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Escutar como ato de cuidado ecológico radical

Escuta profunda e ativa de narrativas sónicas, produções artísticas sonoras e experiências sensoriais para lá da omnipresença da visão, revelando outras perspetivas sobre a empatia, o respeito e o entendimento pela natureza e pelas espécies que habitam o planeta Terra. A intensidade de O Afeto da Escuta: um festival para as ecologias sonoras e enredos sónicos, com curadoria do Institute for Postnatural Studies, reverberou diferentes pontos de vista sobre ecologias, práticas ritualísticas e noções de comunidade, reunindo compositores, artistas e investigadores sonoros internacionais e nacionais no Passos Manuel, na Galeria da Biodiversidade e no Planetário do Porto.

Pauline Oliveros (1936-2016), uma das compositoras norte-americanas mais importantes no desenvolvimento da música eletrónica, em Deep Listening: A Composer’s Sound Practice (2005) reflete: «Quando escutamos, as partículas de som decidem ser ouvidas. A escuta afeta o que soa. É uma relação simbiótica. Quando ouvimos, o ambiente em torno é vivificado. Isso é o efeito da escuta» [1]. Partindo da premissa da autora que cunhou o termo e desenvolveu a metodologia da prática da escuta profunda, o festival começou no Passos Manuel, com o concerto de KMRU. Como a natureza, do artista e produtor queniano, por entre sons eletromagnéticos e gravações de campo de Nairobi, destacou ruídos produzidos pela tecnologia sem fios, emissão de lixo eletrónico e da incessante conectividade do quotidiano, iniciando à escuta profunda. Esta prática compreende ouvirmos atentamente os nossos sons interiores e os que nos rodeiam, permitindo relacionarmos profundamente connosco próprios e com a nossa envolvência, ativando outras formas de empatia e um novo entendimento das afinidades intra e interespécies.

A propósito, outra das inspirações do Festival, foi a noção de Fonoceno desenvolvida pela filósofa e feminista norte-americana Donna Haraway, como uma possível era do som em alternativa ao Antropoceno, em que nos conectamos aos sons da Terra na relação com as suas múltiplas temporalidades, espacialidades e pulsares. Seguindo-se o questionamento da filósofa da ciência Vinciane Despret, autora de Living as a Bird (2019), acerca das formas de habitarmos a recente era sonora, prestando atenção às vozes do planeta, na esperança de termos uma ligação mais simbiótica e consciente com a natureza, sendo a escuta profunda um dos possíveis despertares para a nova realidade do Fonoceno.

Perspetivando este enquadramento, O Afeto da Escuta simbolizou o ato de ouvirmos enquanto diálogo. Sábado de manhã acordamos para a escuta profunda com o músico norte-americano Laraaji. O workshop de meditação pelo riso e o concerto que deu envolveu os presentes na Galeria da Biodiversidade numa espécie de ritual litúrgico, incentivando à gargalhada e à contemplação interior, pelo meio de sons de cítara, gongos, elementos vocais e eletrónicos. E mais tarde, a artista Alexandra Daisy Ginsberg falou sobre a investigação da sua produção mais recente, Augúrios Maquínicos: Toledo (2023). Uma instalação site-specific, em que é criada uma simulação do coro natural de pássaros ao amanhecer, progressivamente substituído pelo canto de aves artificiais. A artista potencia novas interações de cantos de aves, assim como cria um arquivo singular da biodiversidade de cada lugar, chamando a atenção para o facto de muitos destes seres estarem em vias de extinção ou a adaptar o seu canto, devido ao ruído dos humanos. E de seguida, o compositor Antoine Bertin corrobora com a ideia da importância de ouvirmos outros seres, acrescentando que, se queremos sobreviver à crise de biodiversidade, terá de haver uma colaboração interespécies, fazendo uma analogia entre cor, som e História da tecnologia.

Ainda destacamos a performance Vozes de Baleia de Laia Estruch, em que a artista espanhola surpreendeu, desenvolvendo um percurso sonoro, aproximando a sua voz ao canto das baleias, tomando o seu corpo enquanto extensão dos sons que produzia. Ao final da tarde, Panamby, artista transmasculino, e Wirawasu, compositor indígena, conversaram sobre as suas práticas artísticas com Gaspar Cohen, abordando as feridas do colonialismo, as questões de género e das minorias, mas também da indigeneidade, atendendo à escuta, enquanto forma de diálogo potencialmente reparador e dinamizador de encontros e ligações entre passado e futuro. Reflexões enfatizadas pelos concertos que se seguiram, em que se por um lado Wirawasu nos apresentou Memórias de um cachorro, por entre uma colisão de fragmentos sonoros de um ambiente rico em biodiversidade, em que sentimos a raiva, o choque e o embate do conflito entre sons. Panamby com Abissal tocou-nos pela produção de sons eletrónicos pela água, enquanto ritual de purificação e de transição, das experiências da gestação, do parto e do luto. Não descurando a conclusão do primeiro dia, permeada pelo momento mais dançante do evento, com uma performance de Rezmorah e DJ sets de Lechuga Zafiro e de Debit no Passos Manuel, organizada pela editora e produtora portuense Lovers & Lollypops.

O último dia do Festival, ecoando as premissas, pensamentos e reflexões dos dias anteriores, começou no Planetário do Porto, com os concertos do coletivo de investigação artística independente Interspecifics e da artista sonora italiana Marta Zapparoli. Sob a cúpula de planetário com uma visão 360º, assistimos a Comunicações Especulativas dos Interspecifics, pelo meio de paisagens sonoras ambientais de ecossistemas de bactérias e de imagens em movimento de mutações de micróbios unicelulares, juntamente com algoritmos a rodarem a alta velocidade, levando a uma escuta profunda espiralada. Contraposta pela performance de Marta Zapparoli Espaço Gerado Interdimensional (2022) que impregnou o espaço de sons e imagens em movimento dos campos eletromagnéticos das auroras boreais, em que sentimos a energia das radiações da atmosfera. Seguidos de uma conversa moderada por Gustavo Costa, da plataforma para música experimental – Sonoscopia, numa análise de como a tecnologia ajuda a expandirmos a nossa consciência, a escuta profunda enquanto relação espiritual e a ligação com outras espécies através de diferentes escalas de comunicação.

O segundo momento do dia ocorreu na Galeria da Biodiversidade, com Sintonização Vegetal, uma instalação sonora de Inês Tartaruga Água, que preencheu a sala com plantas, usando os dados do ar na tradução de uma composição musical, na criação de um espaço de compreensão com a realidade, o ritmo e os tempos da vida das plantas, em que humanos e não-humanos interagiram com a paisagem sonora respirando. Continuando com a palestra-performance Plantar a semente para colher a canção de Andrea Zarza Canova, em que ouvimos uma seleção de vinis com canções de trabalho e de música tradicional portuguesa gravados depois do 25 de abril de 1974, constantes na Fonoteca Municipal do Porto, em que compreendemos que quem canta estas músicas narra o seu lugar no mundo e a sua relação com o ambiente, os animais e os elementos. Seguindo com o workshop Ecologias de tradução: Sobre sons e pedras dado por Eloisa Travaglini e Sam Simon da plataforma Infrasónica, em que refletimos sobre meios criativos de traduzir o som de uma pedra para palavras, descentralizando a humanidade, chegando à conclusão de que não é a pedra que não consegue comunicar, nós é que não conseguimos falar com ela. Por último, o Festival terminou com as performances Krill e body snatch, da artista e compositora Ute Wassermann, transportando-nos para uma escuta profunda riquíssima, pelo meio da vibração da sua voz com assobios de pássaros e objetos do quotidiano, assim como através de gravações de campo e hidrofones que transformam sons naturais em paisagens sónicas, numa mescla de justaposições, junções e oposições sonoras harmoniosas.

O Afeto da Escuta, organizado pelo Departamento de Arte Contemporânea da empresa municipal Ágora – Cultura e Desporto do Porto, realizado entre 10 a 12 de novembro de 2023, pela sua intensidade, frescura, reflexões, meditações e escutas profundas como ato de cuidado ecológico radical, à luz de The Shape of a Circle in the Dream of a Fish no ano passado, só nos faz aguardar por uma segunda edição, ou um outro festival com uma abordagem e programação semelhante.

 

[1] Citação retirada da brochura de O Afeto da Escuta. In https://www.galeriamunicipaldoporto.pt/pt/programas/o-afeto-da-escuta/

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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