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Berlim, uma crónica inacabada

Berlim é a cidade da História. Fluxos, memórias e sedimentos temporais fluem e confluem nas mágoas tangíveis do passado, nos monumentos, nos destroços do Muro, nos edifícios, nas ruas. A comodificação ou mercantilização do passado é notória, mas também é notório o imenso respeito institucional pelo horror, pelo silêncio, pelas feridas, costuras e cicatrizes de duas guerras mundiais, que volveram e revolveram cada pedra da calçada, cada grão de cimento. Berlim é inesquecível, e a sua História, feita de muitas outras, certamente complexas, díspares, individuais e coletivas, é infinita, inacabada – um exercício arqueológico inesgotável.

De Kreuzberg a Mitte, de Templehof a Charlottenburg, as camadas cronológicas e sincréticas sucedem-se. Correntes subterrâneas afluem desse curso imenso que é o Tempo: infiltram-se nas terras frescas e pantanosas de Berlim, nas paredes das habitações, dos edifícios, por entre as raízes de arvoredos abundantes. Tudo foi tocado pelo Anjo da História, pela morte, pela ruína, enquanto os ventos inelutáveis, inevitáveis, do Tempo empurram as asas e o corpo para o futuro.

Em The Undercurrents, Kirsty Bell faz o levantamento histórico da sua casa, em Berlim, enquanto o seu casamento e a sua família se desmoronam. A casa, tal como o seu casamento, apodrecia. É esse corpo de inertes, divisões, portas e paredes que impele a autora a revirar as muitas vidas que passaram pela sua habitação, depois de se deparar com inundações, infiltrações e sinais evidentes de humidade. Nas margens do Landwehrkanal, num dos extremos de Kreuzberg, a fazer fronteira com Templehof e Schöneberg, a casa da autora testemunhou as grandes mudanças da cidade.

Através da janela da cozinha, de frente para a paisagem aguacenta do canal, Bell vê essa tapeçaria dos dois últimos séculos tecer-se diante dos seus olhos, ao arrepio da diacronia. São múltiplas, as viagens temporais de remoção de camadas, invocação de espíritos, leitura de documentos – um verdadeiro exercício arqueológico. Do canal, através da janela da cozinha e com os olhos dos espectros que outrora ocuparam o edifício onde mora, Bell vê o corpo de Rosa Luxemburg a ser puxado para a superfície, assiste à voragem ciclópica do progresso industrial e tecnológico desenharem uma Berlim sempre cambiante, escuta a polifonia da República de Weimar, testemunha a ascensão do terror, das manobras facínoras dos Freikorps, de Hitler, Goebbels, et al.

The Undercurrents é uma justaposição de topografias – uma cultural, que invoca os grandes nomes de Walter Benjamin, Menzel, a já referida Rosa Luxemburg, Gabriele Tergit, Theodor Fontane ou Rainer Fassbinder; e outra do terror, como não podia deixar de ser, naquela que foi a cidade mais violenta e violentada da História, em que cada sombra espreita as trevas da Humanidade.

Estas são as correntes subterrâneas da História, os esconderijos do medo e do terror.

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Há algo de sinistro na exposição Hunted de Nasan Tur, também ela feita das sombras do ser humano – esse ser de destruição maciça, que manipula, subjuga, mata, fere e caça.

Deposto no chão da Berlinische Galerie, o mundo dos outros seres sencientes parece um sonho belo, pacífico, onde a violência é apenas a necessária, esporádica, causal e meramente operativa, por questões biológicas ou fisiológicas. Uma águia não tem húbris, não tem arrogância, anseios e vaidade. Uma raposa não tem impulsos maquiavélicos. Um veado não tem sede de vingança. Um porco selvagem, um javali, não têm deuses nem demónios. Morrem sem signos. Morrem sem significados. Morrem, simplesmente. Decompõem-se, esquecem-se para as plantas que hão de vir, para os insetos, fungos, líquenes e bactérias por acontecer. Entram na máquina da Terra, que os traga, fragmenta e transforma.

Impedir essa decomposição é dar a estes corpos, a estes cadáveres, uma aura que não têm no seu mundo e que serve apenas para confrontar a atividade humana na sua incessante, inelutável contradição, encerrada num perpétuo e fátuo ciclo de violência. Vemos estes corpos-objeto de cima, como deuses no topo da cadeia de poder. A contemplação é a da hierarquia, primeiro, da compaixão, depois.

Os corpos dos animais embalsamados por Nasan Tur anunciam a interrupção da morte, do desaparecimento e substituição por um sono profundo. A candura das expressões sugere alívio, paz. O branco das paredes e o vazio do espaço conferem ao conjunto uma serenidade imaculada. Mas esse sono é desassossegado por sombras imensas, desenhadas a carvão: mãos cujos gestos sugerem um terror iminente, mãos que puxam, apertam e se erguem sinuosas, insidiosas, dedos em garra; mãos de predação, rapaces. De repente, somos nós as presas. A dimensão dos desenhos engole-nos. O negrume torna-se ominoso. Estes cadáveres convertem-se em fantasmas, numa realidade ectoplásmica que nos persegue.

No final da galeria, como quem espreita os bastidores da tortuosa consciência humana, uma entrevista gravada a um caçador. A conversa é franca, sem artifícios ou frases pré-concebidas. Neste exercício fenomenológico, o caçador explica a sua paixão, o que sente quando caça, quando prime o gatilho, quando vê o animal, ferido, esvair-se de vida. Sente piedade, sente culpa?

Hunted pode entender-se como uma fábula esópica sobre a moral, em que a humanidade é falada através dos espectros mortos dos animais. É essa realidade espectral que opera no ser humano uma reflexão profunda sobre o modo como entende realidades humanas, não-humanas e sobre-humanas, jogando com a psicologia individual e coletiva, e as sombras da História e da Humanidade. Em alternativa, é um tratado sobre o poder e a necropolítica, em que o homem (a escolha da palavra não é inocente), o apex predator por excelência, é quem decide sobre a vida e a morte de outros seres, orientando a vida segundo a morte alheia.

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Em The Undercurrents, Kirsty Bell recorda a obra de T.C. Lethbridge e Rupert Sheldrake, dois indivíduos com carreiras académicas, que viriam a trabalhar e a publicar obras nas ciências ocultas do paranormal. Os “campos energéticos” de Lethbridge e os “campos mórficos” de Sheldrake teorizam a existência de experiências, memórias e traumas armazenados nos objetos do quotidiano. Investigá-los implicava ouvi-los, como uma cassete, esperando que o passado se fizesse reverberar no presente. Só então teríamos acesso ao tempo que os fez nascer, às mãos que os fez acontecer, ao espírito do tempo por que passaram. Os objetos transformavam-se, então, em veículos transgeracionais, capazes de contar, de dar a ler ou a ver uma realidade transata.

Poder-se-á olhar para os objetos artísticos da mesma forma? Poder-se-á entender a atividade artística como a estenografia de um tempo, na qual os artistas imprimem ou inscrevem uma realidade e uma experiência, por mais fictícia que seja, por mais burilada e aperfeiçoada que seja – pois que a verdade e o seu fingimento são necessárias faces da vida? Da arte não esperamos ciência, não esperamos redução. Da arte esperamos realidades cujo acesso requer métodos que estão para lá da normalidade, que implicam lidar com a euforia, os tormentos e a melancolia das almas sensíveis. Através desses métodos podemos escutar ainda os gritos encarcerados nas antigas instalações da Escola de Artes e Ofícios na Prinz-Albrecht-Strasse 8 – depois quartel-geral do Gabinete Central de Segurança do Reich, onde suspeitos e prisioneiros eram interrogados, torturados e enviados para campos de concentração Nazis. Neste palimpsesto de vozes, testemunhos, estórias e histórias, ao lado, do Gropius Bau, chegam-nos as vibrações também da Segunda Guerra Mundial, da destruição, da reconstrução, dos vários artistas e objetos aí expostos ao longo de décadas.

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Em exposição no Gropius Bau, a linguagem que o coletivo General Idea desenvolveu pode muito bem ser encarada como uma tentativa de escrever e inscrever um tempo nos objetos, para que possam mais tarde ser descodificados e escutados por gerações que não o experienciaram. E pese embora alguma dessa linguagem ainda esteja atualmente presente – a omnipresença da publicidade, a citação, referenciação, repetição, mercantilização, etc. –, o certo é que os temas por que se debatiam, esboroam-se por entre os fantasmas do esquecimento da matriz a que essa linguagem muitas vezes se reporta.

Constituído por Felix Partz, Jorge Zontal e AA Bronson, o coletivo General Idea é responsável por algumas das mais hilariantes e desafiantes exposições na história da arte contemporânea. A que agora se assiste em Berlim não é exceção, ao reunir 25 anos de carreira, desde o início do grupo, em 1969, até ao período em que Partz e Zontal viriam a morrer de SIDA, em 1994, ditando o fim da atividade coletiva. A natureza contagiante, viral, circular e hiperprodutiva dos mass media, da publicidade, e da arte urbana e popular que muitas das suas obras preconizam, instituíram-nos num campo temporal e formal que vai da arte conceptual à mail art, da arquitetura ao ativismo, do romantismo à produção industrial e mediática, da antiguidade ao modernismo.

A série Infe©ted (1994) toma como ferramenta exploratória o vírus, que infeta, polui e instila o medo em tudo e todos. O abstracionismo geométrico de Mondrian, na sua esquadria e ortogonalidade de linhas pretas e retângulos pintados com cores primárias, é subvertido. O amarelo é substituído pelo verde purulento – uma cor que Mondrian nunca usara. A icónica cadeira de Rietveld também é submetida ao mesmo vírus. Nas paredes, a palavra AIDS surge em tons vibrantes, de tal modo que nem várias demãos de tinta branca conseguiriam apagar a expressão.

A exposição oscila entre a celebração e a doença, a vida e a morte. O sexo dá lugar aos comprimidos AZT. O que parece homenagem, é paródia. O que parece jovial e bem-humorado é, afinal, coisa séria – uma obra de arte total, que perpassa todos os momentos da vida, os gloriosos, os triunfais, os decadentes e os risíveis. Rimos das alegorias capitalistas e consumistas, mas estamos, na verdade, a rir de nós mesmos. Zombamos das crias de focas, perdidas num mar de esferovite branca a desfazer-se, mas estamos a zombar das nossas contradições e hipocrisias, quando o salvamento destes pequenos seres suscitava mais comoção pública do que os infetados por VIH.

Neste jogo infinito de textos, subtextos e hipertextos, General Idea apresenta uma viagem inesgotável pela produção artística das últimas décadas do século XX, trazendo para a discussão não só estes temas, mas também uma espécie de referencial histórico-artístico que convoca, para além dos já mencionados, nomes como Andy Warhol, Robert Indiana, Frank Stella ou Dan Flavin. General Idea chama, portanto, por aquilo que viria a ser o caráter marcadamente híbrido, expansivo, atemporal, da arte contemporânea e da pós-modernidade, em que a sátira se confunde com a sinceridade e vice-versa, num inquietante desafio de metaironia.

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“Como lembrar uma cidade, numa cidade com um passado como este?”, interroga-se Kirsty Bell. Podíamos fazer a pergunta inversa – o sentido seria o mesmo: Como esquecer uma cidade, uma cidade com um passado como este? Lembramos e esquecemos, entre livros de história, documentos do passado, feridas na cidade, monumentos e museus; entre a falibilidade da memória, as limitações da biologia, a azáfama da vida.

The Undercurrents é uma tentativa de mapear e estudar o continuum por que Berlim atravessou: uma viagem espácio-temporal condensada, que se lê como um mapa cultural, político e social de uma cidade indefinível. Ler The Undercurrents é fazer a tradução de uma linguagem para outra, um exercício de recolocação das estratégias narrativas e construtivas da autora, de interpretar o que é explícito, o que é implícito, de acrescentar às experiências descritas as de quem as lê. Ler é um exercício de empatia para com a construção da História e a ideia de Humanidade, de nos colarmos a uma vida (real, imaginada) e com ela crescermos, aprendermos, lembrarmos afetos, emoções, a desumanidade de muitos atos humanos; esquecermos o medo, as políticas do medo, as insídias do medo.

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Um semelhante exercício de leitura é necessário na exposição in the coherence, we weep, de Kameelah Janan Rasheed. Trata-se, na verdade, de um livro transposto para o espaço expositivo do KW – Institute for Contemporary Art, onde as métricas do texto, a estrutura e ossatura da lógica, da gramática e das semânticas são expostas, não só no seu potencial construtivo e destrutivo, mas também no seu potencial gráfico e pictórico. Janan Rasheed desconstrói não só a leitura, mas também a escrita, segundo uma linguagem formal e pseudo-forense, buscando nexos e sentidos nas margens, entre linhas, no apagamento e ampliação de frases, palavras e gestos. A pictorialização do texto toma conta do espaço.

In the coherence, we weep é uma investigação sobre a falência da linguagem e da coerência, a impossibilidade de uma leitura cristalina, igual para todos, porque as palavras falham e esse exercício de mediação que é a tradução implica a encarnação de experiências por vezes estranhas e incompreensíveis. A incoerência descerra uma moratória crítica e poética para a produção de conhecimento e a autoanálise. Nesta perspetiva, é possível ainda entender na exposição que Janan Rasheed propõe uma ativação textual, que abre espaço para a performance, o improviso e a construção coletiva de um significado, entre espectadores, leitores, cidadãos dotados de agência e potência política.

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Tudo converge para o Muro. O Muro é a referência, o Muro é o destino, o Norte e o Sul, o Este e o Oeste. O Muro é o ponto de encontro da História.

 

Nasan Tur, Hunted, na Berlinische Galerie, até 1 de março de 2024.

General Idea, no Gropius Bau, até 14 de janeiro de 2024.

Kameelah Janan Rasheed, in the coherence, we weep, no KW Institute for Contemporary Art, até 7 de janeiro de 2024.

The Undercurrents, de Kirsty Bell, foi publicado pela Fitzcarraldo Editions em 2022.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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