Álbum de Família – como uma paisagem, escutar o batimento da própria casa
É de tal modo incontornável a importância que Maria da Graça Carmona e Costa tem para a arte contemporânea em Portugal, que hipotetizarmos a sua ausência e perguntarmos “o que teria sido?” faria do panorama artístico nacional um cenário para lá de recôndito. A exposição Álbum de Família, com curadoria de Manuel Costa Cabral e João Pinharanda, disposta por dois locais expositivos – o MAAT e a Fundação Carmona e Costa –, mostra ao público, pela primeira vez, a colecção privada daquela que é a mais importante mecenas particular no país.
Com uma curadoria que privilegia a diversidade da colecção, apostando-se ora na concentração de diversas obras numa só parede, ora fazendo os trabalhos artísticos respirarem, sem elencar uns artistas a uma e a outra parte da exposição, antes confundindo-os pelo espaço, ambos os momentos expositivos dão a ver, mais que uma espécie de catálogo representativo da arte contemporânea nacional, o ímpeto incessante de alguém apaixonado pela arte e que levantou uma casa, com certeza, ciente de que a família não constitui um bem adquirido, coincidindo antes com uma morada em permanente construção. Não existe, aparentemente, um método curatorial determinado, porquanto não exista um método de coleccionar – e a prioridade foi dar luz à colecção como ímpeto, intimidade e vínculo à realidade da arte –, além do prazer de ver e conviver com as obras. Nesta medida, trata-se de uma exposição que parte do lugar do espectador, devolvendo-nos a nossa imagem perdida e vaga num mundo que, por mais hostil que se afigure, é pleno de formas, havendo, ainda, locais onde podemos entrar e desfrutar de um labirinto repleto de diálogos, ecos, permitindo tecer inferências mais ou menos explícitas entre obras, num jogo alegórico de um tempo e, acima de tudo, de uma vida.
A Parte I abre com uma grande nuvem negra, da autoria de Pedro Calapez, sobre uma parede amarela, nuvem continente de uma constelação de livros de arte e catálogos, precisamente aqueles financiados pela FCC, assinalando, dessa forma, o valor histórico que a própria exposição em si detém, levando-nos a reconhecer nesta exposição o fogo fátuo de uma linhagem que inevitavelmente excede este tronco principal que a perfilha. Na primeira sala, uma tapeçaria de Ilda David corta o espaço a meio; corte que, ao invés de dividir, segregar, produz um efeito de continuidade entre as peças, por via do movimento esvoaçante que a passagem dos visitantes inevitavelmente provoca. São várias as técnicas e os estilos expostos – da pintura sobre madeira ou tela, com grafite ou acrílico, à escultura em mármore, ao uso de espelhos; do monocromático ao uso explosivo de cor. Não é, pois, possível acusar a colecção de qualquer inclinação tendenciosa, senão, naturalmente, aquela que corresponde ao gosto pessoal da coleccionadora.
As peças distribuem-se sem que haja uma simetria basilar ou metodológica. Há, ainda, por via da coexistência da pintura, do desenho e da escultura, a repartição desigual – e daí habitável, convidativa – do espaço. De destacar a belíssima sala que, composta por desenhos de Rui Chafes, Pedro Calapez e Jorge Martins, tem como centro – provisório, pois tudo aqui parece amovível, deslocável – uma peça escultórica de Manuel Rosa, composta por um iglu e uma canoa virada ao contrário, em mármore: objectos imbuídos de uma energia aurática, adversos que se revelam face a qualquer recurso utilitário ou funcional. Numa outra sala, 21 aguarelas de João Queiroz convivem com um conjunto de desenhos em formato reduzido de Pedro Cabrita Reis e uma sua escultura em que a transparência reclama um peso e um corpo, em defesa da penetrabilidade essencial da física, à escala e na medida de um jarro de água assente sobre uma prateleira de vidro. Mas o polimento que certas peças sóbrias revelam, como a de Manuel Rosa, encontra outras formas em contra-pesos, nomeadamente, em Theatron, escultura de Pedro Valdez Cardoso, no qual um conjunto indiscriminado de resíduos – de caveiras a latas de refrigerante – é uniformemente coberto por cartão e fita adesiva, indiferenciando o residual do vital ou fazendo de um e outro a matéria que ansiamos, apesar de tudo e contra todas as possibilidades de conservação ou sobrevivência, guardar, extrair e valorizar. António Sena, Vieira da Silva, Rui Sanches, Pedro Saraiva, Julião Sarmento, Fernanda Fragateiro, entre outros, fazem desta abertura expositiva um lugar que amiúde parece levantar a questão: quais as possibilidades de viver no limite entre dois corpos? No intervalo incalculável entre um e outro passo? E se não é o limite que habitamos – lembre-se a escultura de Rui Sanches, na qual o reflexo num espelho torna um par de cabeças num quarteto de perguntas –, que superfície se nos oferece à vontade de caminhar, de fundar e de edificar, enfim, de parar, suspender o movimento?
A Parte II abre com Mapa, de Maria José Oliveira, peça composta por sacos de café a formar quatro mundos, quatro planetas, integrando na função do arquétipo, como olhar exterior sobre o espaço que nos cabe habitar e assinar, aquela da mancha, do resíduo do quotidiano que é a matéria pouca – mas irreprodutível, única –, de que nos podemos servir para pensar o que é maior. Ao lado desta peça, um desenho de Thierry Simões, revelado por camadas: se, por um lado, no fundo do desenho, num primeiro plano do papel, vemos os riscos sinópticos de colunas, telhados, escadas de pedra, por outro, a encimar o desenho evola-se uma grande nuvem de fumo, instaurando um tempo novo e atribuindo à lógica construtiva anterior a espessura do sonho e a convicção velada e obsediante da ficção. A exposição na FCC adquire, talvez por o espaço expositivo ser, na sua totalidade, menor, mas igualmente por as salas serem menos amplas, um tom mais intimista. Os dois estilos predominantes são o desenho e a fotografia, e a presença da escultura é agora marcada por peças de menor dimensão, sendo todas as esculturas portáveis na mão e/ou potenciais objectos a ter em casa, com trabalhos de João Cutileiro, Luís Paul Costa, Pedro Calapez, Miguel Branco, entre outros. À fotografia é dedicada uma pequena sala com trabalhos nomeadamente de Daniel Blaufuks, Paulo Nozolino e António Júlio Duarte. De Blaufuks, The Hostage Negotiators abre a sala fotográfica como se declarando um dilema que, parece-nos, reparte-se entre a intenção aproximativa da fotografia (por via de virtuosismos técnicos e da vontade de chegar a algum lado, desvelar um qualquer segredo) – Rosa Mutabilis, de André Gomes é um bom exemplo – e o efeito distanciador que a mesma acaba por subscrever – veja-se Do Natural #1, de António Júlio Duarte. A carga dramática que, iniciada pelo desejo de olharmos a verdade das coisas, fotografando-as, e o rumo desestabilizador e distorcido que o registo fotográfico potencia distanciando, impede de desambiguar o ímpeto do arquivo, do coleccionar, daquele da imaginação. Ao longo de uma parede, desenhos de José de Guimarães, ao longo de outra, de Pedro A.H. Paixão, trabalhos de Jorge Molder feitos a partir de negativos de fotografias, peças de Helena Almeida, Mariana Gomes, Ana Hatherly, Manuel Baptista inscrevem alguns dos pontos cardeais deste mapa de nenhures. Ou melhor, desta constelação de afectos, sem outro propósito senão esse da fruição da amizade, ao jeito do que sobre esta escreveu Montaigne, nos seus Ensaios: “A amizade, ao invés [do amor], é fruído à medida que é desejada, e só desponta, se desenvolve e cresce na fruição, já que é espiritual, e a alma se aperfeiçoa pela prática”. Portanto, eis uma boa prática do espírito ou o espírito que não cessa de arriscar o pulso, abrindo fendas na vasta superfície do mundo.
É de um começo que esta colecção se trata. Uma novidade esta exposição – como um parto que apresenta diversos momentos e tonalidades, territórios e figurantes cambiáveis –, que promete uma nova morada (a Parte III) em 2024.
Bom seria poder acreditar na verdade como um imenso desfile de máscaras quando abrimos o nosso álbum de família. Mais próximos do nosso tempo estaríamos inventando a nossa própria verdade.
Álbum de Família I está patente no MAAT até 1 de Abril de 2024; Álbum de Família II, na Fundação Carmona e Costa, até Janeiro de 2024.
Maria Brás Ferreira não escreve ao abrigo do AO90.