Sobre quando a água é a melhor metáfora: Carlos Nogueira no Palácio dos Anjos
Tentar escrever algo de novo – com alguma relevância – sobre o trabalho de Carlos Nogueira realça o que há de mais assustador no conceito de “desafiante”, quando tanta gente, de elevadíssima competência, já o fez. Não só sobre o trabalho, mas sobre os temas – para não falar das entrevistas.
A verdade é que estamos a falar de um dos artistas mais importantes da sua geração, para quem a definição de “artista plástico” é curta – sendo que “operador estético” lhe assenta melhor –, porque nem tudo o que se manifesta no espaço é escultura, e nem tudo o que é bidimensional se pode enquadrar dentro de disciplinas do desenho e da pintura. Por vezes é uma aventura por outros campos um pouco mais abrangentes e menos objetivos; ou um “projecto de arquitectura e paisagem e desenho edificado” [1], para utilizar termos que não são meus, mas são mais adequados.
Quando digo que esta é uma tarefa árdua – a de escrever –, não digo de todo que já foi tudo dito, muito menos por Carlos Nogueira. Interessa-me esclarecer que, para o artista, não está – nem nunca estará – tudo feito, porque nem o verde, nem o mar, nem e o céu – muito menos o noturno – se esgotam. Acredito que a exposição água. e a casa é o mundo é também sobre isso.
Atentando a esta mostra de um modo geral, observamos que algumas das peças aqui presentes distam entre si mais de 40 anos – de 1980 a 2023 – e algumas ressuscitam. É como se o artista que sempre disse que os espaços o convocavam para intervir, recuperando forças e energias que eles próprios já possuíam – marcando-os com um “L” de Lugar, como a peça de carvão presente numa das salas –, olhasse agora para todo o seu trabalho como um uno, uma continuidade, a casa que tem vindo a construir. E essa casa é um mundo. Apesar de que esta não lhe pertence, mas sim ao espectador, porque cada um vê o mundo do vão da sua porta [2]. Carlos Nogueira é o obreiro desta edificação.
A água flui e marca, como no desenho, um leito, que a acrescentar às propriedades reflexivas e translucidas da mesma – assim como toda a importância que adquiriu ao longo do tempo no imaginário do artista – a tornam a metáfora perfeita da exposição – não fosse a poética dos títulos também fundamental para o entendimento da sua obra.
Faço especial menção à peça Da Natureza das Coisas Tudo Acaba, onde estão reunidos mais de 140 objetos (materiais, estudos, vestígios, fragmentos) em estantes de aço que me fizeram pensar em Autobiography de Sol Lewitt, em que este fotografa todas as suas posses.
Avancei para junto da estante e retirei, com o meu telemóvel, uma fotografia de dois vidros lá presentes. No silêncio da sala, ouvi uma voz questionar se me interessava saber a que é que eles pertenciam. O acaso ditou que me encontrasse com Carlos Nogueira apenas para descobrir que aqueles dois objetos são estudos para um vitral que desenhou para uma capela em Berna.
Depois de dois dedos de conversa e algumas lições – vícios de quem foi professor a vida inteira –, ofereceu-me uns catálogos de exposições suas que tinha em casa, justificando que, tal como o trabalho, precisava de cada vez menos.
A exposição água. e a casa é o mundo, com curadoria de Catarina Rosendo, está patente no Palácio dos Anjos, em Algés, Oeiras, até 29 de dezembro.
[1] SARDO, Delfim. (2011). “Três proposições sobre o trabalho de Carlos Nogueira”. In: A visão em apneia. Lisboa: Atena.
[2] GRAU, Carolina. (2022). mais desenhos de casas. para ti. Folha de sala da exposição na Galeria 3+1 Arte Contemporânea, Lisboa.