Onomatopeias, aliterações e outros sons
Numa sociedade ocidental focada e comprometida com o binómio olho-olhar, Pedro Tudela desafia-nos a fechar os olhos e escutar. Tangente é a mais recente exposição do artista na Appleton Square, uma encruzilhada entre pára, escuta e olha – um olhar que com dificuldade se concretiza.
Cabos áudio, speakers, ferragens como fixadores e uma luz estroboscópica, tudo visível, tudo exposto e cru, à superfície das paredes (da galeria). Esta é uma estética recorrente nas esculturas e espacialidades de Tudela, incorporando e encorpando a obra. Lembra-nos uma arquitetura pós-modernista [1], com as suas infraestruturas e ductos à flor da epiderme. Um registo assumidamente high-tech, embora com dispositivos analógicos, revelando as suas entranhas e exoesqueleto sem pudor. Um gesto, e gesto aqui como linha de pensamento e também como desenho, que Tudela partilha com estas fachadas mais infraestruturais de inspiração industrial.
Em Tangente, o artista deixa à vista do espectador o percurso visível do som, atribuído à arquitetura do lugar, a propagação, a ressonância, o eco, o que é invisível ao olho. Não é inocente esta comparação entre a obra de Tudela e a construção. É o artista que conscientemente procura esse diálogo com o espaço, numa performance que vai além da sonoplastia e cenografia para nos falar de perceção. Tangente é uma vez mais esse exercício. O som dos seis alto-falantes posicionados na sala ressoam pelas paredes, ligados e emaranhados na cadência da luz que impede o intervalo de tempo necessário para a normal dilatação das nossas pupilas. Quase cegos, procuramos referências cambaleantes, pontos de contacto entre sombras e superfície – um fio condutor –, mas aquele fio solto que tentamos seguir com os olhos, pelo chão, pela parede é sem fim, e logo se perde. Estamos presos na metáfora de Pedro Tudela, ouvem-se sussurros e o arrastar de aranhas a arranhar, a teia está esticada.
A onomatopeia, que conhecemos da poesia, é uma figura de estilo na qual se reproduz um som através de fonemas. Os ruídos da cidade, o arrastar de aranhas a arranhar, os gritos dos animais, as engrenagens das máquinas ou o timbre, assumem a forma de letras que por repetição mimetizam esses sons. Assim aprendemos os ditongos e essa é a atmosfera urbana que Sara Mealha cria para a Appleton Box. Se Pedro Tudela trabalha o som, Sara Mealha faz do som a partitura de uma linguagem. Uma linguagem que impregna o espaço com o cheiro a óleo fresco acabado de pintar sobre as paredes – quase que acreditamos que aquelas telas foram executadas ali, in situ. Sara Mealha conta-nos uma narrativa figurada, resenhas de acontecimentos corrigidos, sobrepostos, dentro do universo da cor vibrante e não óbvia, e das onomatopeias de um alfabeto em aprendizagem. São peças descontraidamente urbanas e do dia a dia, como murais inacabados de rua; cujo movimento cromático e gráfico, e a engenhosa fixação às paredes e sublinho engenhosa, dão força ao vocabulário e apontam a robustez das letras.
Tangente de Pedro Tudela e Meia Bravura de Sara Mealha: duas exposições para ver até dia 2 de dezembro na Appleton.
[1] E de repente lembramo-nos do Centre Pompidou, desenhado pela da dupla de arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers, uma linha seguida em parte por alguns edifícios de Eduardo Souto Moura, como o centro Cultural de Viana do Castelo.