Grandes começos, pequenas mortes: Taking the light out of the prism e os 4 anos da Duplex
No dia 4 de novembro, a abertura da mostra Taking the light out of the prism marcou, também, a celebração dos 4 anos da Duplex | Artists in Residence. Com curadoria de Susana Rocha, artista plástica e fundadora deste espaço de experimentação e investigação criativa, a proposta da exposição transparece a dinâmica e principal motivação da Duplex: oferecer um terreno fértil para o diálogo entre artistas e os seus múltiplos percursos e pesquisas. Convocando como mote agregador a figura do prisma, capaz de “valorizar simultaneamente a energia coesa (que atravessa a superfície do vidro), e a intensidade ampliada das forças individuais” [1], a coletiva reúne, ambiciosamente, cerca de 80 peças de 52 artistas, distribuídas por três pavilhões das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento do Exército, na Graça.
Aberto ao público pela última vez há três anos, na ocasião do Moda Lisboa 2020, o espaço é, sem dúvida, uma mais-valia para a fruição das obras. Em jeito de bienais ou feiras de arte, a exposição alastra-se pelas paredes gastas e as salas compridas da antiga Fábrica Militar de Santa Clara, criada em 1927, num contraste bem conseguido entre as características próprias das instalações – algo rudimentares e, em certa medida, austeras – e o terreno imaginativo talhado pelo encontro das criações ali apresentadas. Cinco núcleos conceituais organizam as possibilidades narrativas e estéticas deste grande conjunto, oferecendo uma leitura que, a depender do visitante, pode ou não parecer linear: do início ao fim metafísico de uma vida, acompanhando a formação e o desvanecimento de um corpo; ou, simplesmente, o despoletar de histórias lúdicas e rizomáticas, que vão se abrindo e contaminando de forma inesperada. Ambas as perspetivas entusiasmam-me.
No piso térreo das Oficinas, o nosso trajeto é instaurado em meio a pinturas, instalações e esculturas que poderiam vir dos céus ou do fundo do oceano, como sugere o nome daquele primeiro núcleo. Invadido por uma luz rosa, com cheiro a vinho e bagas, o pavilhão transporta-nos para um tempo mitológico, originário, mergulhado nas fantasias modernas em torno do natural e do sobrenatural. Logo à entrada, sou imediatamente seduzida pelas águas incendiantes da espanhola Sheila Cañestro, cuja pintura vibrante e elementar – Seguimos la noche, buscando la luz (2023) – dá o tom para o universo misterioso que ali fervilha. Com as cerâmicas vidradas e alienígenas de Francisco Trêpa e Pedro Moreira – Dripping stage e Macrobioma vi (flattered simulacrum), respetivamente, ambas datadas deste ano –, bem como a instalação molhada de Paula König – the water that flows through my body also flows through yours (2021) –, reconhecemos-nos naqueles corpos moles, úmidos, supostamente forasteiros, mas que nos habitam e constituem.
A visita prossegue, então, para o próximo pavilhão, no segundo piso, quando a temática comum passa a ser o absurdo, o ilógico ou a quebra da linguagem. Na sala, sou recebida por pernas de quase quatro metros de altura em Cold Feet (2023), instalação têxtil de Hugo Brazão à qual escapam dois pés para o plano escultural. Há, também neste pavilhão, muito calor, capaz de derreter corpos e borrar a visão. Capaz de derreter o mundo e fazer sobrar somente parafina, moeda e plástico.
Mais adiante, no mesmo corredor, confrontamo-nos, de facto, com os ecos destas estruturas perdidas, mote do terceiro núcleo da exposição. Nesta próxima seção, as obras parecem fazer o luto por algo que se perdeu, na tentativa de capturar, ainda, os rastos de vidas e modos de viver já desaparecidos – e que talvez pareçam, agora, tão efêmeros como o registo de uma polaroid sem título, como em Tjitske Oosterholt, ou as marcas de sol sobre os nossos gastos (demasiadamente gastos) colchões, como no trabalho de Gabriel Ribeiro. As árvores crescem e secam nos esqueletos de tripés, que já não sustentam câmaras para retratar o mundo (que imagens serviriam a este futuro desertificado?) – imaginam as peças Blues II e Blues III (2022) de Hugo Cantegrel. Nathalie Mei mostra-nos, ainda, redes de fungos que tomam toda a matéria orgânica e inorgânica, a madeira e as impressões 3D em poliéster, e podem se transformar, quem sabe, na próxima geração de escultores contemporâneos a partir de objets trouvés.
Assim, a morte e o futuro aparecem como questões incontornáveis nesta jornada, que convocam, por consequência, a reflexão sobre a natureza e a sua potência criadora e destruidora. No quarto e penúltimo grupo conceitual, intitulado Spirituality and nature’s drifts, dez artistas gravitam em torno desta força indecifrável, embora bastante concreta, oferecendo-nos as suas cápsulas e amuletos de contacto possível com outras dimensões, seres e ecossistemas. (Ainda que estes ecossistemas se assemelhem mais com um Oasis (2023) artificialmente construído, por Natalie Feldesman, do que com a ideia antiga e incontaminada de Natureza.) Taking the light out of the prism encerra-se com uma ode a estes territórios impuros – corpo e terra –, desde sempre e para sempre sujeitos a uma miríade imprevisível de embates, conexões e transmutações. A prayer to a little death (2023, Catarina Moura) é tudo o que nos resta fazer.
A mostra está patente, ainda, somente nos 10 e 11 de novembro. No âmbito da Lisbon Art Weekend, prevêem-se visitas guiadas diárias e gratuitas ao público.
[1] Texto de apresentação disponível no website http://duplexair.com.