Entrevista com Leka Mendes, autora da capa do mês
Do fascínio pela alquimia, a arqueologia, a astronomia e as viagens, fundem-se o cosmos e a terra. O mundo é um presente de atração e espanto para Leka Mendes, a qual navega por entre acontecimentos celestes, a geologia, os “desastres naturais” e a veia fotográfica, numa obra eco de todas essas características. Artista-poeta do sonho e do experimental, ama o processo mais do que o resultado final. Mas, desengane-se quem pensa que a destruição que aponta e o desperdício que converte é pessimismo (ainda que reflexo das ações humanas); é uma forma de olhar o céu, de encontrar caminho, por entre os destroços, até às estrelas.
Leka Mendes em entrevista para a capa do mês de novembro da Umbigo, confirma – assim como nos ensinou Saramago – afinal o espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é a imagem do Homem diante de si próprio. E ambas, vamos sempre a tempo de transformar.
Diria que existem vários elementos frequentemente presentes na tua obra: o céu, as estrelas, os planetas, o cosmos. De onde vêm os universos da Leka Mendes?
Acho que sempre tive um fascínio pelo céu e pelo cosmos. São para mim um mistério enorme. De pequena lembro de ficar com meu tio e ele me ensinando as constelações. Mais tarde, nos primeiros trabalhos já procurava lugares inóspitos onde podia observar e fotografar o céu, e pesquisava muito sobre os acontecimentos celestes. Também a geologia e os “desastres naturais” entravam muito na pesquisa, até estudar sobre a origem da palavra desastre (mau astro, que geralmente estava ligado ao cometa trazendo acontecimentos danosos), assim ligando o céu a essas catástrofes que já estudava. Falando nisso não consigo deixar de citar meu último vício: o documentário dirigido por Werner Herzog and Clive Oppenheimer, Fireball: Visitors from Darker Worlds.
É verdade! Se algo te caracteriza mais do que o cosmos, é a veia geológica da descoberta. Podemos assumir que caminhas num entre a expedição, a arqueologia, a técnica fotográfica e, claro, o inevitável lado artístico de transformação. Com um corpo de trabalho que reverbera todas estes atributos, como te defines?
Para mim, a melhor parte de ser artista é poder experimentar essas outras profissões sem ter a obrigação de estar certa ou apresentar um resultado. Quando era adolescente e já fotografava/filmava com câmeras analógicas, achava que seria documentarista de expedições, acompanhando equipes que procuravam por cidades escondidas na América Central e do Sul. Acho que meu jeito de trabalhar é um pouco para realizar esse sonho, parece que estou sempre em expedição. Antes fazendo mais longas viagens de travessias, como Peru, Chile, Uruguai, Equador, Islândia; depois com o ateliê as expedições ficaram mais nas pesquisas, estudando a vida de naturalistas e exploradores como Darwin, Alexander Von Humboldt, Fernão de Magalhães…
Mais do que esses nomes que trabalhas como referências, podemos ler através das tuas criações a tua história e experiências pessoais?
Talvez eu não me revele de forma tão evidente quando se olha meu trabalho, mas tem sempre muito de mim. Para começar está presente o modo como vivo e penso o estar no mundo, que é de onde vem minha maior fonte de criação: como se relacionar com a natureza, o habitar, a casa, a cidade, a tecnologia, o descarte, o lixo… As coisas que me incomodam e agradam. Acho que todo corpo de trabalho é sobre nossa vivência, podendo ser pelo que está me interessando no momento, pela pesquisa, ou até por questões pessoais. Um exemplo é a série Desastres, onde enterrei, afundei ou tentei dar suporte para um monte de casas, e só depois me apercebi estar relacionada com meu próprio processo de separação.
Atualmente o que mais trabalho são objetos coletados e descarte de materiais, como tecido e plástico, pois minha maior paranóia atual é o lixo que geramos.
Na verdade, é fácil o constatarmos, já que é comum vermos nas tuas peças paisagens criadas a partir de desperdícios do que resta do mundo e das nossas ações. Esta procura e metamorfose dos vestígios passados incorpora, assim, a consciência de alguma mensagem ecológica?
Hoje em dia é difícil não pensar no desperdício e no descarte, e no problema que temos com o lixo e, principalmente, material plástico que já contaminou desde o mar, à terra, e ao nosso corpo. Fico bem aflita com essa questão. Sei que o que faço é mínimo para dar jeito nessa situação ou tentar passar alguma mensagem, mas é aquela parte da nossa vivência que aparece nos trabalhos. Tem muito objeto que já existe no mundo que pode ser reutilizado, e também muito descarte que podemos aproveitar. Por exemplo, meus vizinhos de ateliê são uma fábrica de estofado onde eu recolho as lonas para as peças que atualmente trabalho, e um marceneiro onde coleto as sobras de madeiras e peças que deram algum erro.
Sei que és fotógrafa profissional, o que pode explicar a fotografia como ponto de partida das tuas criações. Todavia, e à semelhança do que acabas de partilhar, rompes com a típica imagem fotográfica e o seu médium. Vais além do tradicional, em diferentes direções. De que necessidades nasceu este experimentalismo?
Sempre tive essa vontade de experimentar através do processo, antes fazia com os filmes, do jeito de fotografar e revelar, e com o tempo fui desconstruindo ainda mais esse procedimento, pensando em outras questões sobre a fotografia e também misturando pensamento com outras técnicas. Serve de exemplo a minha série Pós-revelado, com a questão dos naturalistas, a ligação com a mudança de temas no que era pintado; e noutras séries tem uma ligação com a gravura, onde eu carimbo com o entulho no tecido, como se fosse um negativo e uma matriz. Nos trabalhos atuais, além da luz do sol, tem a questão de utilizar a lixívia, como processo de revelar/desvelar.
Precisamente falando na série Pós-revelado, tal como acontece nas séries Antropocênicas e Antropoceno, as paisagens mesclam-se. Qual dirias ser aquela que predomina em ti: a natural ou a edificada?
O natural e o construído estão bem ligados na minha pesquisa. Por ter estudado arquitetura, a questão do abrigo/casa está presente desde sempre, e com essas viagens de travessias reparava até onde o ser humano interferia na paisagem. Acho que essa questão está bem presente em todas essas séries, tanto na coleta de entulhos na Antropoceno – que encaro como um “fóssil” dos tempos atuais – como na Antropocênicas, onde existe uma certa narrativa dos ciclos dos materiais entre o natural e o industrializado/tecnologia; e ainda na Pós-revelado, onde apresento ambientes construídos com alguma vegetação a fim de parecerem um lugar natural, por imitação de outro espaço, como parques de dinossauros, praias e lagoas falsas… Em todos eles sempre tem a questão da exploração na geologia terrestre.
Esteve agora na Appleton, em Lisboa, a exposição Circum-navegação, onde foi possível encontrar – citando Vera Appleton – “os já habituais tecidos que recortas, manipulas e transfiguras em desenhos-escultura.” Fala-me um pouco dessa experiência.
Não ia trazer nada pronto para a residência da Appleton, mas conforme fui pesquisando sobre os navegadores fiz essa relação com uma residência internacional, algo que é fora do nosso lugar habitual de produção. Como trabalho com coleta, e não sabia o que encontraria em Lisboa, acabei trazendo as bases desses tecidos prontas, colagens dos retalhos de lona que faço antes de interferir nas peças. Trouxe essas bases como se fosse meu lado “terra à vista”, onde mantinha a terra conhecida para depois me lançar ao mar, no mistério do mar aberto, estando assim recetiva ao que encontraria na “terra estrangeira”. No fim, achei bem produtivo esse pensamento que norteou toda a montagem da exposição. E sobre os desenhos-esculturas, especificamente, tenho que dar o mérito para a Vera Appleton, pois nunca consegui definir tão bem esses trabalhos.
Piscando o olho à paisagem marítima que acabas de referir, para onde imaginas rumar a seguir?
O título das minhas duas últimas exposições vieram antes dos trabalhos, e acredito que a próxima já possa ter um nome. Com todas essas pesquisas sobre o navegar, e conversando com o Zé Diogo, marido da Vera, que veleja também, o nome surgiu. Ele me explicou que aquilo que eu chamava de “terra à vista” é o bombordo, à esquerda do rumo da embarcação, termo que vem do trajeto dos navios ao descerem o Atlântico mantendo a costa africana do lado esquerdo da terra. Acho que esse rumo já criou bons ventos e me fez começar a pesquisar os tecidos de jutas daqui de Lisboa, motivo de uma nova investigação-exploração, para quem sabe em breve, eu poder navegar de volta para mostrá-los em terra.
Além do bombordo ser o lado do coração, e servir de símbolo de todo esse carinho que foi fazer a residência e a exposição na Appleton, marcando o início do intercâmbio entre a Appleton e o Projeto Fidalga, que frequento desde 2011 e foi essencial para minha prática artística, sob a orientação da Sandra Cinto e Albano Afonso.