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O Animal e as Roupas de Daniel Melim na galeria Monitor

Daniel V. Melim, artista oriundo da ilha da Madeira, apresenta, na galeria Monitor, em Lisboa, a exposição O Animal e as Roupas.

O artista tem desenvolvido um corpo de trabalho que evidencia uma clara alusão a momentos de infância e a memórias da ilha que, graças a um longo arquivo de fotografias de que dispõe, vai desvelando costumes locais, saberes populares, não sem perder de vista um cunho plástico contemporâneo, que lhe confere novas roupagens e exaltações.

Melim, nesta série, pinta sobre superfícies lisas, nomeadamente em suportes de vidro, a que chama “tinta acrílica sem suporte”. Ao contrário da tela, ou outras bases usadas na pintura convencional, o artista trabalha sobre vidros, e começa por pintar primeiro os pormenores, como figuras ou objetos, e somente depois aplica camadas de tinta plástica para concretizar os fundos.

Antes mesmo de entrar na galeria, o visitante vislumbra, pintado sobre a montra de vidro, uma longa camada de tinta com uma figura compreendida ao centro, intervenção esta denominada as montanhas são famílias de pedras, de 2023.

A exposição inicia-se assim no exterior do recinto expositivo, permitindo ao transeunte, não habituado a visitar a galeria, mas que a ladeia na azáfama dos dias, ter igualmente uma experiência estética.

É esse convite que liga o exterior a um interior perfeitamente coerente com esse exterior. Já dentro, percepcionamos obras, ainda na mesma técnica, mas autónomas, retiradas dos suportes de vidro, a emanar uma luzência extasiante. As figuras humanas surgem sempre adornadas por um céu nocturno sideral. Os fundos, sempre estrelados, meticulosamente posicionados, remontam à essencialidade da pintura (lembrando Pollock), ou aos seus elementos, em Greenberg, e trazem, com eles, a gestualidade, a partícula, o sentido cósmico e crepuscular da matéria. As figuras humanas, em comunhão, ou isoladas, encontram-se sempre em estreita relação com esse fundo interestelar, em perpétuo diálogo. Há um vínculo, denota-se cumplicidade. O artista pergunta: “Quem se lembraria de criar esta brincadeira de existir? Que prego segura à parede do infinito este traje de ser corpo humano que vestimos todas as manhãs ao acordar?”

Esta dúvida, no campo existencial, parece acompanhar, e ligar, todas as obras na exposição. Porém, existe algo que faz pressentir uma certa conexão espiritual, uma relação assente na compreensão, na comunhão do amor. Tornada possível pelas figuras humanas representadas, em atividades de grupo, perfeitamente conectadas com a natureza, ou isoladas, em busca de sentidos para as interrogações da alma. Melim decalca esses céus, esse firmamento, justamente para lembrar a importância dos humanos aos ciclos da vida e às leis do mundo natural.

Como o género tradicional Haiku, as obras, presentes na exposição, são como que pequenos poemas, que garantem a ligação entre si e a natureza[1]. Onde todos aprendem a importância da paisagem, e como a vida depende dela[2]. Existe, na natureza, a capacidade para nos instruir para o que nos escapa ao controlo, o que nos é estranho, e regenera-se sozinha, mesmo independentemente do nosso entendimento sobre o assunto, ou compreensão, por mais vasta que seja. E é esse entendimento que nos coloca num estado de humildade, e consciência da incomensurabilidade do que nos liga a todos, a dúvida, mas também o amor, que o une, e cura.

É nesse ponto que a obra recente de Melim nos posiciona na ancestralidade, no misticismo e na cosmologia. Temas que, recentemente, e muito por conta da consciência ambiental, e dos efeitos do etnocentrismo, liberalismo e capitalismo desaforido, têm vindo a marcar as preocupações da arte contemporânea.

Nas obras de Melim, várias figuras humanas encontram-se posicionadas num ponto alto da composição: umas sobre escadas, outras isoladas, como em estrela diária (2023), outras ainda a carregar às costas corpos, aparentemente inertes, para melhor fazer a transição das almas para outras vidas. Como é dado ver na obra Ascenção, de 2023, em acrílico sobre vidro.

A ligação aos saberes ancestrais, “sem nostalgias e idealismos”, como bem esclarece o artista, é feita, muito por uma cintilação de recursos, não só da pintura, mas de outros meios. Voz, som, expressão na corporalidade, palavra dita, ajudam a incorporar a mensagem de uma arte que Melim acredita poder ser útil. Uma arte mágica funcional, que vai beber ao passado[3], mas, simultaneamente, se encontra “comprometida com o momento presente”, uma arte generosa, como diz Melim, “ao serviço do tecido social”[4], onde o artista “se insere”.

A exposição está patente até ao dia 25 de novembro.

 

[1]James Elkins & Rachael de Lue (2008) Landscape theory. Routledge. New York and London. pág. 44

[2] Ibidem

[3] “alvo negro”, presente na exposição, é uma obra que exalta as figuras xamânicas.

[4] https://www.danielvm.com/info.html

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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