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Inquilinos de um Mundo Arruinado: Entrevista com Ticiano Rottenstein, o artista por detrás da obra Arrenda-se T0

Ticiano Rottenstein (1981) nasceu no meio da Floresta Amazônica brasileira, mas se auto intitula um cidadão do mundo. Já foi gestor desportivo durante mais de uma década e, depois de morar em diversos continentes, estabeleceu-se em Portugal, onde decidiu prosseguir a carreira artística. Sua investigação atual envereda-se pelo processo de arruinamento contemporâneo e busca, a partir desta dinâmica entrópica, dialogar com as memórias fragmentadas de uma sociedade em decadência. Autor de peças como Cromeleque Pós-Industrial, já expôs em diversos países como Portugal, Alemanha, França, Brasil e Gâmbia. Recentemente estreou a instalação/performance Arrenda-se T0, apresentada durante os protestos contra a crise da habitação no final de setembro deste ano e que se tornou viral nas redes sociais. Após este momento, a Umbigo o convida para dar a conhecer ao público, um pouco mais da sua trajetória.

Obrigada pela presença!

Bom, já foi revelado na introdução, que você teve uma outra carreira durante grande parte da sua vida, pode nos contar um pouco mais sobre o seu ímpeto artístico?

Meus pais são artistas visuais e desde sempre estive imerso dentro do universo artístico. Entretanto, durante a minha adolescência e o início da fase adulta esse não era o meu foco. Minha paixão era o basquete, tendo sido atleta e depois gestor desportivo. No início dos anos 2000, o graffiti surgiu em minha vida e comecei a praticá-lo de forma despretensiosa. Com o passar dos anos, fui me envolvendo cada vez mais e também experimentando outros meios como a pintura em tela, cerâmica, gravura e escultura. Até que chegou um momento no qual percebi que toda a minha energia, foco e interesse estava voltado para a arte. Não fazia mais sentido prosseguir em um outro caminho. Lembro muito bem do ano de 2013, quando decidi abandonar a minha carreira de gestor desportivo e me dedicar somente àquilo que amava. Ingressei na Faculdade de Belas-Artes e ao mesmo tempo comecei a construir uma carreira artística no Brasil, sob o pseudônimo de Baba Jung. Em 2019, me mudei para Portugal para cursar um mestrado em Escultura na FBAUL e atualmente estou realizando um doutoramento na mesma faculdade.

A mudança para Portugal foi determinante na sua carreira artística?

Eu diria que foi desafiante e determinante ao mesmo tempo. Desafiante, pois no Brasil eu vivia só da minha arte e já estava inserido dentro do universo artístico. Chegar em Portugal foi uma ruptura total desta dinâmica. Estava recomeçando do zero, em um país desconhecido e sem nenhuma rede de contatos. Foi inclusive desta ruptura que resolvi resgatar o meu verdadeiro nome: Ticiano Rottenstein.

Como aconteceu a mudança para o Seixal?

No primeiro ano em Portugal, morei em um pequeno apartamento em São Vicente, Lisboa. Foi uma época complicada, pois logo veio a pandemia e a minha companheira engravidou. Decidimos então buscar um ambiente mais propício para criar a nossa filha e encontrar um apartamento maior. Percebemos rapidamente que os valores de renda da capital não eram compatíveis com o nosso orçamento e procuramos uma alternativa que fosse próxima de Lisboa, mas com valores condizentes com a nossa realidade. Foi aí que surgiu a oportunidade de morar no Seixal. Olhando hoje, com recuo, sinto que tomamos a decisão mais acertada. Desde que chegamos por aqui, parece que o destino conspirou a nosso favor nos âmbitos familiar e profissional. Artisticamente falando, sou muito grato ao Seixal, sobretudo à Câmara Municipal, que sempre me apoiou em diversos projetos artísticos, como residências, exposições, instalações públicas, etc. Em termos de inspiração, o Seixal também influencia muito a minha criação artística devido ao seu relevante passado industrial e as suas diversas fábricas remanescentes. O arruinamento industrial tem sido um dos focos majoritários do meu trabalho nos últimos anos, pois enxergo a sua presença como um dos maiores símbolos da decadência da nossa atual sociedade.

O resgate das memórias fragmentadas que acompanham estas estruturas parecem ser uma componente fundamental do seu trabalho. Você pode nos contar um pouco como surgiu este interesse em explorar… digamos – cromeleques e monolitos do passado recente?

Quando criança eu queria ser arqueólogo e me interessava bastante por escavações e a recolha de vestígios históricos. Essa paixão de infância, que ficou adormecida durante muitos anos, aflorou novamente na minha atual pesquisa artística. Considero que o meu trabalho cruza fronteiras interdisciplinares entre a arqueologia urbana e as artes visuais. A recolha de fragmentos de um passado recente é um componente fundamental durante este processo criativo. Sou literalmente um acumulador de memórias! Com estes objetos descartados desenvolvo esculturas, assemblages e instalações que dialogam com a entropia urbana e abordam, explicitamente ou implicitamente, diversas problemáticas de um atual modelo de sociedade que, ao meu ver, está fadado ao fracasso. Este é o caso, por exemplo, da instalação escultórica Cromeleque Pós-Industrial. Este trabalho foi inspirado nos monumentos megalíticos de Portugal, mas desenvolvido com novas interpretações e simbologias contemporâneas. Construído somente com madeiras de descarte recolhidas da Fábrica Mundet, a obra foi instalada publicamente na Baía da Amora, Seixal. Enquanto os monumentos dos nossos antepassados veneravam deuses e cultuavam a natureza, os meus cromeleques reverenciam os valores modernos, como a idolatria ao capital, consumo e os bens materiais. Além de realizar uma crítica, o trabalho pretende despertar uma reflexão sobre qual o legado que pretendemos deixar para as futuras gerações e também apontar novos caminhos sustentáveis para uma mudança de consciência coletiva.

Você acha que a arte contemporânea pode ser uma chave para o exercício da cidadania, para o pensamento do indivíduo sobre a sua própria realidade?

Eu acho que cada artista tem necessidades pessoais que conduzem o seu processo criativo e as motivações são múltiplas. No meu caso, acredito que uma importante missão do meu trabalho é retratar o cotidiano, os acontecimentos e as problemáticas do meu tempo. Não pretendo criar uma arte pautada somente na beleza estética e vazia de conteúdo, mas sim algo que gere um incômodo e desperte reflexões nas pessoas. Há claramente uma componente crítica e de denúncia intrínseca ao meu trabalho, mas também mensagens positivas de esperança e de renovação. Portanto, respondendo a sua pergunta, sim, acredito que a arte pode ser utilizada como uma potente ferramenta para provocar reflexões e potencializar mudanças individuais e coletivas.

Você acha que a paternidade tem influência nesse processo? 

Sim, com certeza. Ser pai mudou completamente a minha perspectiva em relação à vida. Antes, o futuro a longo prazo não era um pensamento recorrente e estava muito focado no presente. Hoje, me preocupo muito com o futuro da minha filha e do planeta. Inevitavelmente, isso se reflete no meu atual trabalho. Bom, agora eu gostaria de me aprofundar mais em um dos seus trabalhos mais recentes, que é o Arrenda-se T0; em protesto contra a crise da habitação, que aconteceu em Lisboa nos últimos dias 29/09 -30/09.

Qual foi a chama que acendeu a sua vontade de voltar-se para o tema?

A crise habitacional em Portugal é dramática. Eu como pai, imigrante, estudante e artista independente, vivencio no cotidiano as dificuldades decorrentes desta situação. Percebi que estava totalmente no meu lugar de fala e senti a necessidade de, através da arte, extravasar esses sentimentos de angústia e frustração. Foi esse o ponto de partida para a criação da instalação e performance Arrenda-se T0. Trata-se de uma sátira trágico-cômica que apresenta-se como um ato de protesto, um grito de indignação e um gesto de solidariedade. A instalação materializou-se em uma casa T0, totalmente remodelada e mobilada, construída a partir de refugos industriais e outros objetos encontrados no lixo. A performance consistia em incorporar um agente imobiliário, fundador da empresa Rottenstein Real State. Esta empresa, especializada no segmento imobiliário de luxo, estava lançando o seu novo empreendimento e abordava as pessoas com o intuito de apresentar a casa e tentar arrendá-la por um “módico” valor: 1.800 euros. Na verdade, a obra já estava pronta há alguns meses, mas estava esperando a melhor ocasião para colocá-la na rua. O momento certo chegou, quando ocorreram as manifestações nacionais contra a crise da habitação e realizei duas apresentações da performance, que aconteceram na Alameda da Universidade e na Praça do Rossio. Estava no lugar certo, na hora certa e tudo fez sentido.

Quais são os próximos passos? Soube em primeira mão que você está planeando leiloar a peça…

Sim! Estou organizando um leilão em praça pública, que será realizado através de uma outra performance. A ideia é vender um único pacote que inclui a casa T0, sessões de performance, além de um material audiovisual completo. O conceito de um leilão em uma praça pública pretende democratizar o seu acesso e participação a todos. O dinheiro arrecadado da venda será doado para uma instituição que trabalha em prol da melhoria da condição de vida das pessoas em situação de sem abrigo e em situação de vulnerabilidade social. É um projeto que está em andamento e no momento estou buscando instituições, fundações ou colecionadores que tenham interesse em participar do leilão.

Maria Eduarda Wendhausen (Rio de Janeiro, 2000). Licenciada em Ciências da Arte e do Património pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e é aluna do mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte pela mesma instituição. Estudou também na Sotheby's Institute of Art no curso Writing for the Art World, From Idea to Submission. Atua como escritora e curadora na cidade de Lisboa, Portugal. Colaborou com o Manicómio no espaço de exposições Pavilhão31 e com a Carpe Diem Arte e Pesquisa. A sua última atuação como curadora, realizou-se na ARCOLisboa2022 com a exposição CRACK THE EGG do Prémio Arte Jovem Millennium bcp, em 2022. Em 2023, começou a colaborar com a CentralC como content manager. Escreve regularmente para revistas científicas e especializadas como freelancer no ramo da crítica da arte, assim como features e ensaios académicos, com o intuito de divulgar e promover para o público geral, as múltiplas facetas dos estudos artísticos e os seus desdobramentos na vida quotidiana.

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