Top

Litoral, Literal, Lutoral: Gabriela Albuquerque e Chico Diaz no Coletivo Amarelo

Mas pra quê?
Pra que tanto céu?
Pra que tanto mar? Pra quê?
De que serve esta onda que quebra?
E o vento da tarde? De que serve a tarde? 

Inútil paisagem
Pode ser que não venhas mais
Que não voltes nunca mais
De que servem as flores que nascem pelos caminhos?
Se meu caminho sozinho é nada [1]

A pandemia de Covid-19 levou a artista Gabriela Albuquerque a refugiar-se nas praias paradisíacas da costa lisboeta. Os desafios e a monotonia dos confinamentos levaram-na a passeios na Praia do Guincho, onde representou incessantemente as paisagens que testemunhava. Este período de criação culmina agora com a exposição Litoral, Literal, Lutoral, que mergulha nas memórias de Gabriela e reflete sobre a beleza e tragédia das paisagens costeiras.

A obra Inúteis paisagens (2020-2023) é composta por uma série de pinturas em óleo sobre papel, que formam uma constelação de fragmentos de uma paisagem litoral. Inspirado na música Inútil Paisagem de Elis Regina e Tom Jobim, o título da obra levanta questões sobre a sensação de deslumbramento que uma paisagem nos pode fazer sentir, mesmo num mundo em crises constantes. Afinal, para que serve a beleza de uma paisagem se tantas coisas trágicas podem acontecer nela?

Este dilema abateu sobre Gabriela Albuquerque, e a força das ondas que pelo seu caminho rebentavam abriu a caixa que tão bem guardava as memórias sobre a fatalidade que já lhe tinha acontecido numa outra praia, num outro litoral. Gabriela perdera o pai num acidente trágico quando ainda era criança, na sua praia de infância no Brasil, num perfeito dia de sol e calor. As paisagens pelas quais foi obrigada a caminhar repetidamente durante a pandemia permitiram-na aceder a uma memória que ocorreu há mais de trinta anos.

Ao aceder a essa memória, nasce a obra Casa de Praia (2023), uma série de vinte e cinto pinturas que representam uma casa vermelha inserida numa paisagem litoral. A pintura é cinematográfica e contém uma narrativa não linear. Em certas composições a casa boia no vasto mar, noutras quase que é engolida pelas ondas. A casa vermelha move-se com a paisagem, tal como a artista. Na conversa que aconteceu a propósito da exposição, no passado dia 14 de outubro, Gabriela Albuquerque confessou que a casa seria mesmo uma representação de si própria, a vaguear pelo litoral, numa procura pelo significado do ressurgimento de todas essas memórias que nasceram de uma experiência traumática. O seu corpo é a casa, e a casa é a sua casa de infância.

Numa outra seção do espaço do Coletivo Amarelo, denominado como a “Menor Galeria de Lisboa”, acontece simultaneamente a mostra de três obras de Chico Diaz, Memória I, II e III (2023). São pequenas pinturas em acrílico e aguarelas sobre papel, inundadas por um fundo negro que sustenta as formas que o artista constrói. Vemos uma paisagem resiliente, onde uma árvore vermelha surge por entre um corpo de pedras. Remete para uma paisagem interior, que nasce de um lugar onírico, mas também sombrio. É um território que se opõe ao litoral.

Nas obras de Chico Diaz, as cores são escuras e pálidas e abordam algo de surreal. Nos trabalhos de Gabriela Albuquerque, a pintura está repleta de cores vivas e o que conta é explicitamente biográfico. Em ambos há a ausência do corpo como objeto. E em ambos, o vermelho torna-se um símbolo que significa vida e inquietação.

Apesar de territórios opostos, o diálogo das duas obras faz-se no solo. Nas palavras de Cristiana Tejo, curadora da exposição: “Se nas paisagens de Gabriela o paradisíaco trata da morte, nas de Chico a desolação trata da vida.” [2]

A paisagem é sempre lugar de refúgio, que acolhe tanto o sonho como o real.

A exposição Litoral, Literal, Lutoral está patente no espaço do Coletivo Amarelo até 25 de novembro de 2023.


[1]
Inútil Paisagem, música de Elis Regina e Tom Jobim. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tggzkeOntCg&ab_channel=ElisRegina-Topic
[2] Citação retirada da folha de sala da exposição Litoral, Literal, Lutoral.

Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)