Quando Deus te odeia, o que fazer?
Em 2019, a 3+1 Arte Contemporânea tornava-se anfitriã da primeira exposição de Juan Tessi em Portugal. Agora, com Dios me odia, a galeria volta a receber uma individual do artista, desta vez com uma mostra que conjuga as suas figuras mais-que-humanas com telas quase-abstratas, frutos de uma investigação mais explícita sobre o processo de pintar. Escrevo “mais explícita” porque, de certa forma, mesmo nos desenhos que cria ao manipular cirurgicamente diferentes contornos sobre o linho – e que, pela sua pictorialidade, acabam por incitar leituras também menos formalistas –, está sempre em causa uma prática em mutação, um fazer artístico que quer deixar ora os seus métodos, ora os seus resultados, em aberto.
Não à toa são tão variadas as interpretações que se debruçam sobre o seu corpo de trabalho. Por um lado, Tessi já foi destacado, entre alguns expoentes das artes visuais argentinas contemporâneas, ao lado de outros dois “Juans”: Del Prete, pela sua capacidade pioneira e antropofágica de devorar materiais, recursos e estilos diversos, ou Becú, pela desconfiança e a liberdade com as quais manobra certos procedimentos e géneros pictóricos. Mais do que em Manglar, a sua exposição estreante em Lisboa, percebe-se em Dios me odia esta ênfase sobre a pintura como epiderme, território autodeterminado, espaço para experimentações e fantasias livres de constrangimentos – e, até, do olhar ou aprovação divinas. São esses os casos, por exemplo, de Duelo de banjos ou El sembrador, ambas as obras datadas deste ano, cujas abstrações irrestritas deixam ainda transparecer o frescor característico do artista.
A esta autora – que confessadamente se interessa menos pela gramática do que pelos possíveis sentidos das suas composições –, porém, os desdobramentos mais curiosos e desafiantes da obra de Tessi são aqueles que provêm, justamente, das suas escolhas figurativas, e que apontam para problemáticas fundamentais dos nossos tempos sob as lentes específicas de um artista veterano do Sul global, latinoamericano, com raízes fincadas sobre o solo, tradições e mitologias peruanas. (Essas poderiam ser categorias limitantes, não fosse o compromisso de Juan Tessi com uma iconografia desejante, celebratória, capaz de reinventar-se quando bem quiser.)
Na sua ecologia vibrante de cores e humores, cabem o pensamento cosmológico – qual é a origem do mundo? Como se formaram as montanhas? – e ontológico – qual é a essência do humano? Há algo que nos separa, verdadeiramente, de outros reinos (animais, vegetais, minerais, espirituais)? Cabem a sacralidade indígena dos povos mesoamericanos – deidades fluidas e diversas, com corpos sem frente, nem trás, sem anatomia nem geografia, e que se deformam e conformam aos contornos do mundo – e um erotismo queer silencioso, que vai abrindo espaço para novas paisagens do prazer, num contexto de fronteiras e limites em vias de desaparecimento. Ao fim e ao cabo, quanto é que não cabe num corpo que se esvaziou dos órgãos, das ordens, das doutrinas?
Curiosamente, Javier Villa, curador sénior do Museu de Arte Moderna de Buenos Aires, apresentou Tessi como “um pintor que não trava uma batalha histórica, mas que produz sem censuras porque sabe muito bem que os seus deuses estão ao seu lado.” O curador referia-se à insuspeição com a qual somente um artista “de um país ou região colonizados” poderia “misturar a arte pré-colombiana, as suas próprias histórias e o exotismo orientalista”[1]. Pois bem: pouco importa se o Deus monoteísta, possível símbolo de uma moralidade homogeneizante e patriarcal, odeia-te ou ignora-te. Podes renunciá-lo. Podes tu ignorá-lo de volta. Há muitos outros deuses por descobrir, por desenhar, por esculpir e por dançar. Fora do juízo supremo, não há nada que não possa ser feito ou imaginado. E o que fazer com esta liberdade excessiva? Começar, talvez, pelos mapas de Juan Tessi.
Dios me odia está patente na galeria 3+1 Arte Contemporânea, em Lisboa, até 11 de novembro.
[1] Texto disponível em https://terremoto.mx/en/online/pintura-nueva-especie/.