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A Forma em Formação na Brotéria

A primeira coisa que salta à vista quando se entra na exposição, comissariada por Ricardo Escarduça, A Forma em Formação, são os desenhos de Catarina Lopes Vicente, que se posicionam defronte para a entrada da galeria Brotéria.

Sabendo que a prática do desenho serve objetivos muito distintos, percebemos que o conjunto de desenhos, presente na galeria, segue propósitos muito definidos, com enfoque na ideia do desenho enquanto atividade artística, com fim em si mesma, e balizada por “princípios estéticos” [1].

Desse modo, para o artista, o desenho, mais do que um suporte que serve para sustentar uma ideia, pode ser um campo aberto onde é possível também “experimentar” livremente, e “esteticamente” [2].

A série de desenhos que Lopes Vicente nos apresenta, perfeitamente ajustada e alinhada com a restante exposição, revela-nos tanto uma liberdade processual [3], onde há lugar para a “experimentação” e descoberta, sem limites ou fronteiras [4], quanto desvenda um propósito, de certo modo, embrionário, gerador de caminhos novos ainda por trilhar. Onde habita igualmente algo por vir, iniciático e promissor.

Uma linha desenhada sem uma finalidade concreta, inaugurando o seu trajeto, contribui para uma abordagem do desenho em si, enquanto arte autónoma e suscetível de desenvolvimentos, estes repletos de acasos, surpresas, e imprevistos.

Existe no desenho, enquanto disciplina artística, oportunidade para, sem restrições, fundar novos caminhos perceptivos e deitar por terra os olhares que viciam e fazem adormecer os nossos sentidos quanto a uma urgência na criatividade, e um olhar mais além das coisas.

A artista, imersa na consciência da grandeza do que é a prática do desenho, desencadeia relações formais entre os seus elementos, e concentra a sua energia na descoberta de territórios criativos sem limites.

O desenho é um poderoso modificador. Tem artes de transfiguração, é camaleónico. Tanto se altera a si mesmo, quanto interfere, e transforma, o que o cerca, ou o que se encontra dependente dele.

Também a matéria, que a artista enforma com as suas próprias mãos, torna evidente essa busca de realidades por vir, descobertas antes impensadas, por aquilo que ainda não existe, mas está pronto a eclodir e enunciar. As formas, que se dispõem sobre o solo da galeria, ainda da mesma artista, sugerem um permanente devir, uma constante transformação da matéria.

O desenho é o modo mais célere de transmissão de ideias em movimento. A matéria viscosa feita de areia vulcânica e cola, que a artista tanto decalca e distorce continuadamente com as mãos, é reveladora  da influência da disciplina do desenho em todos os seus contornos.

Também os sentidos são despertos de forma plena.

O som imediato que é desencadeado pelas memórias, ou pelo modo como imaginamos as peças serem prensadas no calor das mãos da artista.

O odor a barro, induzido pelas formas de Lopes Vicente, pode ser também lembrado, porque reside na nossa memória coletiva.

O quadro das nossas referências irá condicionar sempre o que vemos e que conhecemos.

O tempo, esse, não é o mesmo partilhado entre os artistas. A instalação de Vera Mota revela-nos, por outro lado, um tempo que se encontra cativo, encapsulado.  É do passado que parece inscrever-se a instalação de Mota. Nele vemos formas que exprimem uma ausência. Espaços vazios onde, outrora, moraram seres, e onde se protegeram humanos.

O corpo é uma proteção. Mas há toda uma desintegração na instalação da artista. Há peças, feitas de látex, papel e cobre, que parecem vísceras, e nos alertam para a fragilidade da existência.

A vida está protegida por uma membrana fina.

O desenho, nesta exposição, é exteriorizado de diferentes formas. Podemos ver a sua expressão de modo mais convencional, através do recurso aos seus elementos: ponto, linha e mancha, e estes sobre a superfície plana do suporte; podemos observar as suas linhas de força impressas e decalcadas sobre a areia vulcânica, ou por meio do som, como no vídeo de Rui Horta Pereira, em que os assobios que se ouvem e dilatam no espaço configuram, ou induzem, em modo sonoro, o desenho de linhas curvas a dobrar sobre o espaço da galeria.

A Forma em Formação está patente na Brotéria até 11 de novembro.

 

[1] Rodrigues, Ana Leonor M. (2003). Desenho. Quimera Editores.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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