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A fogueira cultural lançada por Dulce D’Agro: 50 anos da Galeria Quadrum

Com meio século de existência e resistência, a origem da Galeria Quadrum tem raízes na mulher que a fundou e no seu amor à arte: Dulce D’Agro (1915-2021). Para celebrar o aniversário deste espaço e a memória da sua fundadora, o artista e curador Paulo Mendes organizou a exposição Quadrum 50 anos, uma fogueira cultural, um projeto curatorial que ilumina o rico arquivo histórico da galeria. A exposição inclui ainda obras dos artistas que moldaram a sua identidade enquanto espaço de vanguarda, tais como Alberto Carneiro, Alexandra do Carmo, Ana Hatherly, António Olaio, Cristina Mateus, E. M. de Melo e Castro, Ernesto de Sousa, Fernando Brito / Ases da Paleta, João Vieira, Jorge Molder, Julião Sarmento, Miguel Leal, Miguel Palma, Paulo Mendes e Salette Tavares.

Dulce D’Agro inaugura a sua galeria no Palácio dos Coruchéus em Lisboa, a 22 de novembro de 1973, com a exposição coletiva Artistas Modernos Portugueses, que contou com nomes como Alice Jorge, Ângelo de Sousa, Fernando Calhau, Menez, Nadir Afonso ou Nikias Skapinakis. A partir daqui a história da Quadrum tem como protagonista a sua fundadora até 1995, com um período marcado pelo processo de internacionalização de artistas portugueses, ou, ainda, pelo esforço de mostrar em Portugal artistas internacionais (entre eles Gina Pane, Karel Appel, ou Victor Vasarely). Nos anos seguintes, instalou-se a incerteza com encerramentos constantes até 2005. E só em 2010 é que a Quadrum ganha nova estabilidade ao ficar sob a direção da EGEAC. Neste último capítulo, a galeria abandona o seu carácter comercial e torna-se num espaço dedicado somente à mostra de obras de arte.

A exposição inicia-se com o registo fílmico da performance Rotura de Ana Hatherly, que aconteceu na Quadrum em 1977. Nela, a artista rasga treze painéis de papel de cenário, sob as câmaras e os olhares atentos do público que a assistia. Foi um gesto assumidamente provocatório que pretendia desafiar a conceção comercial da arte, transformando os resíduos da intervenção num objeto artístico. A performance é também ilustrativa do compromisso da Quadrum em oferecer aos artistas um lugar para conseguirem expor obras de carácter não-comercial.

Atravessando as cortinas na qual Rotura (1977) é projetada, entramos no espaço expositivo da Quadrum, onde somos de imediato confrontados com a imensa fotografia de Dulce D’Agro, em destaque na parede de fundo da sala. Entre nós e o retrato da mítica galerista, estende-se uma longa mesa que sustenta o vasto arquivo que documenta a história deste lugar. Entre o material exposto, encontramos fichas de obras, inúmeras cartas trocadas entre artistas e galerista, faturas de compra e venda de obras de arte, recortes de imprensa, fotografias de montagens de exposições e, diversos outros materiais que raramente são mostrados ao público.

A resistência da Quadrum mostra-se desde o princípio da sua existência. Em primeiro lugar, pela ousadia de abrir portas ainda durante o Estado Novo. Depois, por ter sido uma das raras galerias comerciais que conseguiu permanecer ativa no período pós-revolução, como refletido por Dulce D’Agro no jornal o Diabo a 2 de junho de 1987, “Depois do 25 de Abril de 74, houve uma quebra total no mercado da arte. Não se vendia nada, absolutamente nada, por preço nenhum. Foi a travessia do deserto”[1].

Dulce D’Agro desde cedo reconheceu a importância da internacionalização da sua galeria, tendo participado em diversas feiras de arte. Ao longo da exposição, vamos encontrando objetos ilustrativos destes acontecimentos, como cartazes (Arte Fiera 78, em Bolonha, Arte Basel 79) ou documentos identificativos dos expositores pelos quais a Quadrum passou. Com a sua participação, Dulce D’Agro solidificou a reputação da galeria, contribuindo para a difusão da arte contemporânea portuguesa.

Além disso, a Quadrum contribuiu significativamente para a formação de diferentes públicos, oferecendo cursos de arte lecionados pelos principais críticos de arte portugueses. Numa das paredes é exposto um cartaz da década de 70 do “Curso de Iniciação à Arte Moderna”, orientado por “Salette Tavares, Rui Mário Gonçalves, Manuel Rio de Carvalho e Ernesto de Sousa”. Ou ainda, o curso prático dado por Ernesto de Sousa de “Conhecimento da Arte Atual”.

A programação traçada por Dulce D’Agro dedicou-se também ao público mais jovem. A Quadrum abriu portas às crianças e adolescentes das escolas primárias e secundárias que circundavam a galeria, com visitas guiadas às exposições e laboratórios educativos. Num desenho que ilustra uma destas visitas, realizado pelos mais jovens, lemos frases como “D. Dulce a sua exposição é muito bonita” ou “Vou fazer os desenhos que vi na Quadrum”.

A correspondência que é exposta, denuncia as relações afetivas entre a galerista e os artistas. No meio da burocracia que a produção de uma exposição exige, os artistas encontram espaço para partilhar a sua intimidade. Exemplo disto, é uma carta do artista Ângelo de Sousa, dirigida à “Amiga Dulce” a 4 de janeiro de 1977. Nela o artista desabafa sobre o seu cansaço, escrevendo: “Não tenho feito nada absolutamente. De facto, estou no fim da corda e sem vontade de fazer seja o que for, embora, de vez em quando, me acudam projectos para isto ou para aquilo — algumas pinturas, esculturas, filmes, gravuras, até — mas, devido ao cansaço, na maior parte das vezes, nem tomo nota dessas ideias que, por essa razão, voltam para o sítio de onde vieram”.

Uma das obras mais emblemáticas que destaca o caráter disruptivo da Galeria Quadrum volta ao seu local de origem. Numa televisão, revisitamos o vídeo da performance Caretos de João Vieira, realizada na galeria em 1984. Nela o artista vestiu-se de careto (uma figura tradicional da região de Trás-os-Montes) e trouxe um burro para o espaço da galeria. O animal, com as pernas amarradas, manifestava o seu desconforto enquanto o artista desenhava, pintava, comia pão e bebia vinho.

A inauguração da exposição Quadrum 50 anos, uma fogueira cultural contou com as performances de António Olaio e António Poppe. A voz de António Poppe começa a crescer por entre a multidão com um poema de Herberto Hélder. Das palavras que se seguiram, ecoaram as de Dulce D’Agro e das crianças que passaram pela Quadrum: “Ninguém vence o mundo, ninguém vence o mudo, escreveu uma criança numa aula de Salette Tavares”, ouvimos.

De seguida, num esforço para envolver o público, António Olaio circulou em volta da grande mesa com uma mala na mão. Cada vez que a abria, uma luz surgia do seu interior, revelando um cartão que ele lia em voz alta antes de lançá-lo ao ar. Entre as muitas palavras e frases que surgiram da sua ação, caiu-me aos pés o cartão que dizia “trompe l’oeil”.

A performance assumiu um rumo mais provocativo à medida que o público permanecia indiferente às ações dos artistas. Por fim, ambos se uniram para um gesto final. Incrédulos diante a falta de sensibilidade da maior parte do público, António Olaio pediu que o volume da música fosse aumentado, declarando “Mais vale ouvir a música do que as palavras”. Enquanto isso, Antonio Poppe utilizava a sua voz como manifesto de revolta, levando-a ao limite.

A comemoração do 50º aniversário da Galeria Quadrum, homenageia o grande legado cultural deste lugar histórico e o papel fundamental da mulher que o tornou possível. Nesse olhar para o passado, António Olaio e António Poppe incendiaram a galeria, perpetuando a chama da ousadia e do compromisso com a arte. E assim, honrou-se a visão e paixão de Dulce D’Agro.

A exposição está patente até ao dia 21 de janeiro de 2024.

 

 

[1] Citação retirada do recorte de jornal exposto na exposição Quadrum 50 anos, uma fogueira cultural.

Laurinda Marques (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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