Febre: António Júlio Duarte no Museu de Arte Contemporânea de Serralves
Susan Sontag, uma das mais importantes escritoras e críticas de arte norte-americanas da segunda metade do século XX, no ensaio Os Evangelhos Fotográficos (1977) a propósito da fotografia geralmente caracterizada como realista, defende que: «A fotografia é o paradigma de uma ligação inerentemente equívoca entre o eu e o mundo, e a sua versão da ideologia do realismo determina, por vezes, que o eu se anule perante o mundo e, por vezes, permite uma relação agressiva com o mundo para celebrar o eu. Uma ou outra das vertentes desta relação está sempre a ser redescoberta e exaltada».[1] Pressuposto, a fotografia tem sido commumente descrita dicotomicamente, ora como uma atividade consciente, ora intuitiva, enquanto ato de expressão individual sobre o mundo, ou de relação distanciada com o entorno, produzindo imagens de caráter mais pessoal e subjetivo, ou estrito e informativo, porém o ato de fotografar não deixa de ser uma construção da realidade, uma ficção, um fluxo constante de realidade captada pelos fotógrafos.
Febre de António Júlio Duarte, patente na Galeria Contemporânea do Museu de Arte de Serralves e na Capela da Casa, com conceito do fotógrafo e da curadora Paula Fernandes, reúne trabalhos produzidos entre 2019 e 2022 (durante a pandemia de covid-19), distinguindo-se pela disposição específica no espaço expositivo de cinquenta fotografias, de formatos semelhantes, em linha reta, sob uma luz amarela que por vezes nos atordoa, reforçando o estado febril contemplado no título, constituindo um conjunto de imagens a preto e branco, e a cores, demonstrando fragmentos do quotidiano, objetos que povoam uma casa, naturezas mortas, texturas, retratos e corpos escondidos e revelados. Fotografias de uma aparente banalidade, porém de uma forte tensão, contraste e plasticidade, reverberando o “eu” do fotógrafo perante a realidade, permitindo uma infinidade de possibilidades de leitura, numa relação com a realidade, que segundo Sontag, está sempre a ser redescoberta e exaltada. Não obstante, a obra Queimado (2017), uma impressão sobre tecido de grande formato na Capela da Casa de Serralves, um autorretrato de António Júlio com o corpo queimado num cenário destruído, tirado durante a rodagem do filme Mariphasa (2017) de Sandro Aguilar, que remata a conceção expositiva, confrontando com as noções do fotógrafo que anula a sua presença física nas fotografias e o que se impõe no centro da imagem num contexto ficcional, instigando uma vez mais acerca das ideias da relação com o real da fotografia, desse encontro do fotógrafo com o mundo e o do fotógrafo à procura de si no mundo, ou dessa sujeição à realidade, ou perseguição da realidade.
António Júlio Duarte (Lisboa, 1965) iniciou a sua produção artística de um modo mais consistente e intenso a partir dos anos 1990, depois de sair de Portugal rumando para outros países, realizando imagens editadas em séries, como Oriente/Ocidente (1990-1994), Japan Drug (1997), ou White Noise (2011). Primeiramente a preto e branco e mais tarde a cores, a fotografia vai se revelando, como um meio de descobrir o mundo, mas ao mesmo tempo uma posição do “eu” perante a realidade percecionada, também num gesto autobiográfico, não concretamente assumido. Segundo o autor no programa Entre Imagens(2014) da Rtp2: «um trabalho onde há uma certa evolução de continuar a fazer imagens, em que aquilo que fotografo é sempre externo a mim, mas aquilo que fotografo é sempre reflexo daquilo que eu sinto em relação ao estado do mundo» [2]. Em Febre, a primeira exposição individual do fotógrafo em Serralves, apresenta imagens a partir de sua casa e do exterior que a rodeia, num exercício aparentemente diferente do habitual, mas que não deixa de ser o seu posicionamento perante a realidade. Através de uma Olympus Mju II Point & Shoot, uma máquina fotográfica que fora convencionalmente usada para cenas familiares pela sua praticidade, portabilidade e qualidade, António Júlio aponta e dispara, sem usar o visor para enquadrar, revelando as imagens em casa, pelo meio de processos tradicionais, conseguindo uma maior proximidade e intimidade na captação do mundo que habita, mas também uma maior espontaneidade. Imagens que no espaço expositivo nos demonstram uma narratividade desse estado febril e de ansiedade do momento, dessa clausura e confinamento, desses pequenos momentos que se tornaram grandes, desses silêncios e ruídos, dessa estaticidade e lentidão do tempo.
Terminando com uma citação do autor: «Mesmo quando se trabalha sobre a realidade, a fotografia nunca é realista. Essa pretensão de registo imparcial da realidade é uma ficção, uma das grandes mentiras da fotografia. A fotografia é sempre uma imagem construída por quem a faz. A partir do momento em que um fotógrafo isola um momento no tempo está a construir uma ficção».
Febre de António Júlio Duarte está patente no Museu de Arte Contemporânea de Serralves até 12 de novembro de 2023.
[1] Sontag, S. (2012). Os Evangelhos Fotográficos. Em S. Sontag, Ensaios sobre fotografia (pp. 115-148). Lisboa: Quetzal Editores. p.123.
[2] Entre Imagens – António Júlio Duarte (1/13). (3 de Março de 2014). Obtido de Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=NoVAm6gNoDs
[3] Ibid.