Um ecossistema cultural chamado sertão, por uma Bienal que “educa a paisagem”
A sexta Bienal do Sertão começou com quatro performances que abordam o tema da ancestralidade.
No Centro Cultural do Banco do Nordeste Cariri em Juazeiro do Norte, Ceará, Yasmin Formiga realizou uma ação-paisagem sertaneja, utilizando elementos típicos da caatinga, o único bioma exclusivamente brasileiro: carvão, areia, catos, sinos relembram que um solo árido não significa “terra inútil” – trata-se, na verdade, de um tesouro a preservar.
Marcos Martins edificou uma construção ambígua, recorrendo a tijolos de rapadura e cana-de-açúcar; um banco ou uma ponte cuja superfície, afinal, foi abençoada por mel, o mesmo contido na vasilha, que o artista derramou completamente na sua cabeça, terminando a performance e recordando que pertencer à terra vai bem além dos elementos que se encontram em áreas especificas: a vida é universal. Robson Xavier criou um diálogo com o pai, utilizando como objeto-trâmite um casaco azul, desmembrando-o parcialmente, para doar fitas de tecido aos visitantes: desde sempre carregamos no nosso corpo a presença do passado, as relações, que se debruçam no grande mar da compreensão ou do desentendimento, transformando-as através da nossa vivência, consciência, cultura. A homenagem a uma relação ancestral também envolve o trabalho de Messias Souza, com uma vertente educacional, que contempla o reconhecimento das próprias origens e descendências.
De facto, não é por acaso que o tema desta edição da Bienal, curada por Denilson Santana, Lucas Dilacerda, Renata Lima e Matteo Bergamini, tenha como título Educar a paisagem.
Desde o ano da sua criação, em 2012, a Bienal do Sertão tem vindo a proporcionar um novo conhecimento a respeito de uma das áreas mais fascinantes e complexas do planeta, isto é, o sertão brasileiro.
A sexta edição conta com 39 participações (30 do Brasil, 9 do exterior), entre mais de trezentas propostas que concorreram ao edital aberto, que caracteriza, desde sempre, o evento. A Bienal tem sido o lugar privilegiado para observar a identidade sertaneja atual, composta por contaminações, mudanças, culturas paralelas, a conviver entre o antigo e o moderno. Reflete-se tudo isto na originalidade do projeto – exemplo mundial de manifestação itinerante, dentro do mesmo país, atravessando o mesmo bioma de norte a sul do Brasil e vice-versa, tendo passado já pelos estados de Pernambuco, Bahia, Piauí e o Distrito Federal.
A Bienal, em suma, parece seguir, de forma atualizada, a travessia preconizada por Guimarães Rosa do Grande Sertão: Veredas; pelas suas terras encontramos a pós-paisagem e uma reflexão sobre os sertões de hoje, como acontece no vídeo de Rafael Vilarouca, assim como na pintura-instalação da artista KÂO, exposta no terceiro andar do CCBNB, em diálogo com as aves noturnas de Larissa Batalha, capturadas pelas fotografias de Rafael de Almeida, cuja composição misteriosa é trabalhada por fungos sobre a película 35mm.
Mais um destaque dessa primeira exposição, cuja itinerância já está marcada para Brasília, em julho de 2024, é o resultado da microrresidência do coletivo Intervalo-Fórum de Arte, realizada em somente três dias no Museu Paleontológico Plácido Nuvens, em Santana do Cariri, lugar no qual se respira a memória geológica da Terra.
Mas como o sertão “tem o tamanho do mundo”, diz-nos mais uma vez Rosa, eis que chegam também a Juazeiro obras do Paraguai, de Itália, da Alemanha e da Holanda, entre outros, a demonstrar como a “educação para a paisagem” é necessária em qualquer lugar do planeta. Tirando um último passeio pelas salas, chegam-nos as cartografias abstratas e elegantes da artista argentina Ana Rey, o quadro-bordado de Vika Teixeira, que nos revela como o Brasil é uma invenção e um território demasiado vasto para conseguir narrar uma verdade simples: a perceção de uma geografia e da sua política conecta-se, uma vez mais, com a experiência humana. Também acontece com os dois rapazes de mãos dadas de Rafael Amorim, figuras que parecem guardar a mostra, dois protetores da igualdade e do respeito.
Educar a paisagem, 6° Bienal do Sertão, está patente até o dia 31 de outubro de 2023, no Centro Cultural Banco do Nordeste Cariri.