Blue Angel de Miguel Branco na Galeria Pedro Cera
A exposição Blue Angel, de Miguel Branco, é, na sua totalidade, concentrada numa única parede, à esquerda de quem entra na galeria. Um conjunto de pinturas em pequenos suportes de madeira – sem que nunca as medidas se repitam -, uns de forma quadrangular, outros circular, pontuam, qual mapa ou constelação, a extensão branca da parede. O efeito imediatamente produzido é duplo: por um lado, damo-nos conta do espaço vazio que prevalece sobre o espaço habitado, por outro as formas miniaturais apelam, à distância – analogamente à própria experiência do espectador – a uma aproximação. À discrição da forma pequena apõe-se, em não menor importância ou relevo, a ousadia de, em enquadramentos assaz diminutos, fazer concentrar ícones extraídos da história da pintura, como escreve Bernardo Pinto de Almeida na folha de sala, aproveitando um excerto do texto que assina para o catálogo da exposição anterior do artista: “Miguel Branco trabalha (…) sobre imagens retiradas dessa fonte inesgotável a que chamamos (…) ´história da pintura` que, na verdade, vai colher readymades no vasto banco de imagens em que se transformou a própria História da Arte tornada”[1]. Pelo recurso a imagens retiradas da iconografia religiosa cristã, da tradição flamenga e medieval, o artista dispõe o seu trabalho enquanto laboratório interminável, no qual as pinturas não obedecem mais aos códigos das narrativas iconográficas, a que por afinidade correspondem, do que ao desejo e à pulsão para a sua re-elaboração. É, na verdade, a um esforço devidamente plástico e corporal – e a sua necessária consciencialização – a que Miguel Branco incita, através do apelo a um movimento aproximativo, incisivamente dirigido ao espectador-visitante da exposição, que não cessa de realizar-se: não cessa, deveras, a experiência contínua do espectador, não cessa a exposição (em contínuo horizontal ao longo da parede), enfim, não cessando a inclinação activa do acto de olhar. E o que será, afinal, a tradição, a História, assim como a memória, senão o presente (e o presentificar) de um recuo perpétuo (ou de um avanço a contrapelo)?
Ao jeito do que propôs Freud, é a um exercício de associação livre – aqui fora do território terapêutico no âmbito do qual o pai da psicanálise o elabora – a que as pequenas tabuinhas nos motivam e, mais, a que nos forçam: imagem do passado, de diversas tradições ocidentais, prováveis tangentes constitutivas da história privada de cada um (pelo menos a esta latitude do globo), cuja espectralidade volve a gramática e o terreno sobre os quais o futuro, como projecção, se edifica. Curioso é – e aí reside uma das marcas distintivas e de força maior da exposição – que as pinturas com que nos defrontamos, ao longo da parede, pareçam retiradas de outro universo, despidas, não obstante, da aura que a citação tantas vezes em si carrega, num virtuosismo mais ou menos suportável. Apresentam-se, pois, como retalhos de uma obra maior, em sinal de um momento pré-constelar, pré-figurativo, relativamente àquela constelação e àquela figuração, que agora testemunhamos. Um pouco como o inconsciente onírico, com o qual, porventura, a única forma de diálogo, aprofundamento e compreensão, reside nesse jogo de associação livre, antes de mais, imagético. As figuras envolvem-se, com efeito, numa pele dramática que as qualifica como partes iguais de um caos pré-linguístico, resistindo no apelo de sentido que, nos termos em que as pinturas estão expostas, dispõe-se como apelo de montagem e/ou encaixe. Caos traduzível a diversas escalas, no que dos quadros se prolonga até ao domínio psíquico e pensante de cada espectador: de impressões mnésicas que não podemos localizar no tempo, e que assim adquirem o fulgor de uma paisagem impressionista, mais tonal que propriamente recortada, passando pelo imaginário exemplar dos mitos, até mesmo à noite inaugural da nossa concepção (como indivíduos e como espécie), enigma retumbante a que sempre regressamos. Em todo o caso, a confluência de motivos e figuras iconográficas nas tabuinhas de Miguel Branco convida a uma re-calibragem e uma contextualização do nosso lugar e do nosso legado de espectadores. Ensina-nos o artista que o nascimento dos mitos, como evento acrónico, faz desse caos – o mais próximo de um estado de pureza, anterior à linguagem e ao próprio universo – matéria tão-só concebível num tempo posterior, tão-só testemunhável numa posteridade oculta e errática. Neste sentido, se a presença de figuras iconográficas, de valor mitológico, remete o espectador para um tempo anterior a si mesmo, instância matricial cujo valor fundador é proporcional ao seu carácter inapreensível, fá-lo pela criação de composições com um certo acento (pós-)apocalíptico: figuras a solo, em cenários desabitados, pinturas de flores, rochas e montanhas – os elementos quase friamente isolados e destacados -, lembrando o modelo da natureza-morta, ou cenários nos quais os seus habitantes parecem estar condenados à permanência naquele lugar e à fidelidade à expressão, mais ou menos circense, mais ou menos melancólica, que detêm na pintura. Numa determinada economia visual, concentrando-se estreitamente enquanto porção e forma de vida singulares, os quadros são cenas, espectáculos, pequenas peças de teatro ambulante, contudo fixos no corte com que se apresentam, mutáveis apenas, e aí sim, no contacto com um lado de fora, um exterior. As pinturas como pequenos emblemas, enigmas portáveis, num material – a madeira – convidativo ao toque, já o dizia Barthes em Mitologias, e nessa familiaridade instigando à estranheza que certas figuras eminentemente impõem: jogo, com efeito, tão infindo quanto encantatório.
Além do valor histórico – na dobra mitológica que sempre, em diferido, lhe corresponde – das narrativas evocadas, através de figuras como anjos, gárgulas, caveiras, etc, e que reproduzem uma certa visão do mundo, inscreve-se um problema de cisão crítica. Blue Angel notabiliza-se igualmente enquanto potencial reflexão acerca da dispersão alienada em que vivemos actualmente. Isolados como peças de um jogo sem plataforma de encaixe, de que os suportes de madeira são reminescentes, a exposição acerca-se do problema, mais do que dos mitos, da figura e do valor do mito, situando-o como ponto de resistência numa zona cinzenta, fronteiriça, a que a intermitência visual das pinturas contra o branco da parede atribui uma textura e outra legibilidade. Expressões mitológicas, assim, renascidas por via de um estímulo associativo que confere a uma história, a uma imagem-arquétipo, brilho inusitado. Ao mesmo tempo, se essa dispersão pode ser a fina exposição de um distanciamento epocal estruturante, sintoma de males da civilização – e aqui o artista surge, ao estilo barroco, como o intérprete dos tempos, por via de um dramatismo engenhosamente cultivado -, não menos acertado será ler uma tal força centrífuga como o modo de nos re-ligarmos, por meio dos ícones, comoventes através da auscultação do pormenor e do detalhe, por oposição à experiência religiosa do fiel contrito em face de altares imensos na sua verticalidade talhada a ouro ou forjada a mármore.
Trata-se igualmente, Blue Angel, de uma proposta visual sobre como fintar o esquecimento e, consequentemente, este como modo de produção de novas semelhanças, desprovido que está o conjunto de uma figura tutelar que, nos termos da doutrina cristã, fosse o modelo, à semelhança do qual o Homem e todas as figuras se declinassem. Isto não significa, todavia, que Miguel Branco trabalhe contra os mitos. Pelo contrário, trata-se de um elogio ao mito, à narrativa e ao símbolo. Um elogio ou uma elegia, pois que a suavidade, ora matizada, ora resoluta em promessas de fluorescência – mas falta o projector de luz que a conceda – investe as pinturas da suspeita de indícios de um tempo que passou e de estarmos, pois, diante de uma vida depois da vida, habitando um mundo, cuja (nova) linguagem urge apre(e)nder, do mesmo modo que, de uma outra, fazer o luto.
Se a palavra anjo, na sua etimologia (do grego ággelos), remete para o termo do mensageiro, aquele que porta a mensagem de Deus, adjectivá-lo com a cor azul inscreve como que uma dupla referência ao plano celestial. Anjo que traz a mensagem, de Deus para os Homens, revelando-se a mensagem demarcação de uma cisão – uma cesura – na qual se realiza a expressão. Mensagem do Anjo que porta, em si, a cor do céu por que se desloca: mensageiro activo e cuja passagem visual, colorida, prevalece sobre qualquer instância superior: é o último risco, a mais actual crítica. A língua e a vida das imagens já só pode estar do lado das estátuas que despertam, dos seres jacentes que se erguem em voo e dos estranhos que, juntos, meditam sob o mesmo céu, no salto de uma para outra tabuinha: “Nous jouissons de tout” (como se escreve num dos quadros) até ao rosto atónito em face destas cartas-postais, deste jogo incompleto, tão indelével e tão fulgurante quanto intraduzível. O Anjo, se não guarda tudo, olha-nos de volta. E é Azul – diz-se.
Blue Angel, de Miguel Branco está patente na Galeria Pedro Cera até 4 de Novembro.
Maria Brás Ferreira não escreve ao abrigo do AO90.
[1] Almeida, Bernardo Pinto (2023). Miguel Branco, Terra – ou os quarenta e nove degraus. Lisboa: Documenta, p.16.