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Na poesia (e na vida) não há pontos de fuga: João Motta Guedes na Galeria NAVE

Perdoem-me a indiscrição, mas talvez sob o efeito causado pelo peso existencial da questão que João Motta Guedes nos coloca com o título da sua primeira exposição individual na Galeria NAVE, How to live?, a minha primeira interação com o espaço expositivo, tinha, contrariamente ao que nos sugere a instalação, um destino muito claro. Entrei na sala, e, sem empenhar uma atenção cuidada, atravessei a brita, pé ante pé, entre os espaços formados pelas seis tábuas do carril, e dirigi-me a um balcão improvisado, numa divisão lateral, para pedir um copo de vinho.

Já de missão cumprida, avisto, por trás deste balcão, a peça We follow the road, uma fotografia, em caixa de luz, a um carril de comboio algures na américa do Sul, mas a sua localização geográfica pouco importa. As duas linhas paralelas que o formam não tem outra opção se não ceder às leis da perspetiva, à qual a objetiva – assim como um olhar num momento específico – as submete. Hão de encontrar-se, e intersetar-se, algures no horizonte, mas talvez se esteja a simplificar demasiado.

Do you know if the way is safe until the horizon[1]

O meu encontro com esta peça, antes de atribuir a atenção merecida à restante exposição, permite, não apenas localizar o conteúdo da instalação no percurso artístico de Motta Guedes, mas também no percurso pessoal de forma mais clarividente, atribuindo-se uma referência que não se limita – de forma alguma – ao puramente visual.

Se ao referir a fotografia se falou do encontro das linhas – e consequentemente do seu fim – o tema e motivo, tanto da foto como da instalação, é antes a crença, não na sua infinitude – no sentido em que a noção de um fim continua presente – mas da possibilidade de uma “disrupção da linearidade – temporal e espacial – que potencie a experimentação do percurso”.[2]

Lembrei-me de um documentário iraniano[3] sem respostas – de 1967 – onde, num dia de tempestade alguém fez parar um comboio, impedindo um terrível acidente que iria ser causado por um dano na ferrovia a vários quilómetros de distância. Surgem diversas teorias sobre a quem atribuir a responsabilidade do ato heroico. Cada jornal, pessoa e político da região conta uma história diferente. Discute-se amplamente, desde o lógico ao absurdo, o que terá feito o comboio parar. Criou-se um cenário a partir de um acontecimento real, e colocou-se uma questão, respondida individualmente pela subjetividade de cada um.

João Motta Guedes oferece-nos igualmente um lugar (cenário) – que é a mais perfeita representação visual da propensão à contemplação do infinito, no sentido das suas possibilidades, que me parece a principal qualidade da obra – mas exclui um tempo particular, sendo que estes “portais” não viajam para tempo algum, são antes espelhos para quem procura o horizonte de olhos virados para o interior. A principal poética da obra está aliás nessa indeterminação.

Os 7 painéis LED, que passam individualmente um poema cheio de questões, reforçam ainda mais essa sobreposição de perspetivas e ausência de respostas certas, tal como fazem uma apologia visual de regresso à ideia de horizonte. No entanto levantou-se-me uma outra questão.

No dia da inauguração consultei apenas o poema impresso e saltou-me à vista um verso específico: “Who are the 7,983,947,056 people on this planet”. Por inocência ou ignorância acreditei que iria encontrar o mesmo número em loop e abandonei a galeria antes de confirmar.

Durante os dois dias que se seguiram esta questão perseguiu-me, pois se acreditava que uma das mais belas facetas poéticas da instalação seria a indeterminação temporal, este número iria denunciar e datar a mesma – tendo a população mundial atingido os 8 bilhões em meados do ano passado.

Um número tão descaradamente desatualizado demitiria a sensação de um sonho lúcido, e colocar-se-ia antes no campo da memória, uma memória que não nos pertence. Esta podia significar o mundo para o artista, mas seria uma história com início meio e fim para o espetador. Terminaria, tal como na fotografia, onde a vista alcançasse a interceção das linhas.

Voltaria à galeria para me assegurar que este era o mesmo número que estaria nos painéis. O número que lá estava era 8.061.328.702.

A exposição How to live está patente na Galeria NAVE, em Lisboa, até 11 de novembro de 2023.

 

[1] João Motta Guedes. Untitled Poem (Horizon). 2023. Poema que passa em loop nas placas.

[2] Eva Mendes. Folha de Sala da exposição O jardim dos caminhos que se bifurcam na qual João Motta Guedes participou. Buraco

[3] Kamran Shirdel. An shab ke barun amad. 1967

Tiago Leonardo (Lisboa, 2000) licenciou-se em Ciências da Arte e do Património (FBAUL) e frequentou o curso de Jornalismo Cultural (SNBA). Atualmente está a terminar o mestrado de Estética e Estudos Artísticos, com especialização em cinema e fotografia (NOVA/FSSH) onde incide a sua investigação no pós-fotográfico dentro do contexto artístico português. No seu trabalho como escritor e colabora com diversas publicações; como o CineBlog do Instituto de Filosofia da UNL, a FITA Magazine, entre outras.

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