A Casa e outras formas
Porta Entreaberta é uma exposição colectiva na casa-sol da artista Francisca Valador. A própria morada, Travessa do Guarda-Jóias, anuncia reflexos preciosos, e a subida para o bairro da Ajuda confirma a altura iluminada. Todas as janelas nos arregalam o Tejo opaco, seguro, bloco de azul- novo. Na casa-voadora, preparadas com magia, obras das artistas Inês Brites, Leylâ Gediz, Sara Graça, Sara Mealha e Francisca Valador.
Entrar nesta Casa é visitar uma exposição com os códigos de acesso próprios de um espaço doméstico, pedindo as licenças necessárias, enquanto se sacodem os sapatos, para aceder a uma tragicomédia marcada por proposições quotidianas aparentemente conformes com a realidade, mas, no detalhe, em radical subversão da mesma.
Na divisão correspondente à Sala, Francisca Valador pontua o tempo com as pinturas Crescente e, depois, Minguante, localizando o ritmo da Lua que marca as marés, as emoções, os ciclos de plantações e também as menstruações. À obra Passeio, quatro letras i pintadas na parede, e Cama, uma mini-cama altííííssima, de Sara Mealha, sucedem as palavras proibidas que o desejo aumenta. A letra i cresce e repete-se na emoção da saída à rua em proporção directa com a altura da cama infiniiiita na maldição da noite mal dormida. Dormimos bem depois de passear, mas não dizer em voz alta, por favor, passeio em frente do cão, cama em frente da criança ou insónia em frente da pessoa adulta.
Uma Lágrima e Outras Geometrias, de Inês Brites, ironiza a grande equação ocidental na resolução de que o emocional não encaixa nos limites ortogonais quer das plantas arquitectónicas quer das estruturas institucionais, públicas ou privadas, revertendo a hierarquia das formas no privilégio da fluidez, inesperada. Ao lado, no vidro da janela que dá para a rua, Isa vou-me embora, vinil de uma figura humana, de Sara Graça, recorda os limites da Casa, angustiando na lembrança de que este espaço é lugar de chegada, mas também, e sempre, de partida. Na varanda, Francisca Valador dilacera-nos o coração com a obra Sem par, em que uma meia solitária secou num sol infinito de Verão, já sem a sua meia-metade, sobre um sedutor corrimão azul.
O coração aberto resolve-se na divisão seguinte, o Quarto, com Três amores, uma pintura a óleo de três amores-perfeitos roxos e brancos, frescos e chorões. Na parede oposta, Um cálculo delicado, de Inês Brites, em provocação directa, jocosa, à pintura formalmente triangular, aparentes profissionais do equilibrismo. Para regozijo final, a obra Pano Roxo, uma estrutura de cama, desta vez de Sara Graça, abraçada por um cose-cose de panos encontrados, retalho emocional, Setembro numa casa de praia ou auto-caravana docemente freak.
Isto é tudo muito honesto e entre lágrimas, gargalhadas e projecções, que os truques e a ficção espoletam, é na Cozinha que, já no final do dia, se revêem os conceitos (de memória). Leylâ Gediz apresenta-nos umas imaculadas e simples bases brancas de pastelaria, de papel, dobradas, de memória, numa proposta perecível de recuperação da pintura que se encontra na Sala, do mesmo nome, Neareastern, contrariando a ordem cronológica da representação: o objecto existe quando representado.
No texto que acompanha a exposição, Eva Oddo fala-nos das “formas amigas que juntas pegam voo e caiem E pegam voo”. É uma imagem especialmente bonita, que traduz o espírito de uma exposição colectiva transparente e relacionalmente rica. Onde há intimidade, há também distância, há glória e fracasso, paranoia, clareza, desejo, amizade, e é na iluminação de todos estes aspectos que a colectividade é possível. Obrigada, Francisca, por nos entreabrires a porta da tua casa com tanta franqueza.
Porta Entreaberta pode visitar-se até 20 de Outubro.
A autora não escreve ao abrigo do Novo AO.