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Entrevista com Elizabeth Prentis, autora da capa do mês

Pensemos num mundo sem limitações, nem de género, nem de expressão. Onde elementos de risco e provocação são convidados a juntar-se às ações mais banais. Onde, mais do que isso, serão eles próprios gatilho para a ação, a qual ocorre através de processos altamente experimentais, sem estereótipos, tampouco uma predeterminada e redutora classificação binomial “homens ou mulheres” que dita, consequentemente, diferentes capacidades e privilégios. É neste mundo que Elizabeth Prentis navega, numa luta contra regulamentos e predefinições, para digerir ideias de dominação, jogos de poder e expectativas de género; ato de rebeldia face ao status quo e àquilo que é reprimido ou normalizado. Combinando um fato de construtor e equipamentos industriais hipermasculinos com batom vermelho, manicure ousada e pertences convencionalmente femininos, este é o seu manifesto antipatriarcal. Esta é a declaração humorística da artista sobre os juízos coletivos que ora separam, ora suprimem as diferenças, alimentando um ciclo de comportamentos e lugares-comuns no que respeita sexismo e desigualdade.

Na capa do mês de outubro, Prentis revela como a sua prática pode ser simultaneamente catarse das experiências pessoais, catalisador de encontros com as histórias dos outros, radar essencial para temas silenciados, e ainda um inevitável gesto de solidariedade para com todos aqueles capazes de se reconhecer.

Expressas-te numa prática multidisciplinar. Como é que tudo começou? E como é que os diferentes meios encontram um ponto comum, uma maneira de veicular uma mensagem única?

Tive de batalhar para entrar na escola de arte, pois não era de todo o caminho que a minha família queria que eu seguisse.

Trabalhar com vários materiais e processos estimula o lado mais lúdico e experimental. Trabalho de forma muito intuitiva e aborreço-me rapidamente com as coisas, portanto trabalhar de uma maneira multidisciplinar mantém-me entusiasmada e curiosa. É claramente uma prática de estúdio e não uma prática tradicionalmente académica centrada na investigação. O processo criativo é muito reativo, por isso escolho um meio que se adapte a cada momento.

O meu trabalho tem um ponto em comum que é independente do meio utilizado. A narrativa e a intenção das peças mantêm-se constantes em função dos temas explorados.

Dirias que o teu trabalho encarna a tua história e experiências pessoais?

As minhas experiências estão profundamente enraizadas no meu trabalho autobiográfico. Usar a nossa própria vida como matéria-prima criativa é um processo extremamente vulnerável. Há uma grande dose de humor nesse trabalho, o que me ajuda a abordar temas desafiantes ou experiências vividas. Introduzir o humor ou o absurdo permite também que o público aborde temas difíceis na minha prática.

É difícil avaliar até que ponto queremos que os elementos pessoais sejam visíveis e até onde desejamos partilhá-los.

No meu trabalho, ponho constantemente à prova o meu grau de conforto em relação ao que sinto que posso partilhar e questiono os meus limites. Esta abordagem honesta acaba por ser um catalisador para conversas importantes com os outros sobre a sua história e experiências pessoais. É algo muito especial e um motivo de orgulho.

Muitas vezes, o teu trabalho artístico retrata a ideia de domínio, relações de poder, expetativas de género e patriarcado. Consideras que a tua prática é um mecanismo para divulgar e impor mensagens sociais e políticas?

A beleza de fazer arte possibilita berrar as coisas que te irritam na cara das pessoas. O maior catalisador da minha prática é o que me enfurece. Somos ensinados a não gritar, a ter uma conversa calma e moderada; que deus nos livre de alguma vez parecermos desequilibrados.

Um contexto artístico permite-nos levantar questões sociais e políticas sem sermos silenciados. Como mulher, o sexismo e as consequências de uma sociedade patriarcal indignam-me e, obviamente, exprimo isso no meu trabalho, não só pelas suas qualidades catárticas, mas também como forma de educar e de mostrar a minha solidariedade para com outras mulheres.

Perguntaram-me uma vez como é que a condição de artista feminina influenciava a escultura de metal e betão que eu tinha exposto, uma peça que foi apresentada lado a lado com um escultor masculino que utilizava um material semelhante. Só que ele não foi questionado sobre o seu género em relação ao trabalho. Então porque é que eu fui? Esta interação estimulou e muito a minha investigação sobre as expetativas de género na minha prática e passei a representar propositadamente estereótipos híper-masculinos.

A minha prática tem vindo a explorar sempre as dinâmicas de género e de poder num contexto social mais alargado, mas neste momento evoluiu para abordar especificamente as questões relacionadas com os papéis de poder na política sexual, a partir da perspetiva de uma mulher heterossexual. As minhas próprias experiências pessoais contribuíram para que a minha prática se centrasse no domínio e nos jogos de poder num contexto sexual.

Nas tuas performances estereotipadas híper-masculinas, escreveste uma dissertação sobre as múltiplas facetas do homem – o trabalhador e o metrossexual -, na qual levantaste questões importantes sobre o modo como a sociedade, a indústria e os paradigmas culturais estão a moldar as nossas perceções e, de alguma forma, os nossos preconceitos sobre o perfil e a masculinidade do homem. Será que podes fazer uma breve introdução às ideias que tens explorado e exemplificar como a tua prática artística as desmonta? Sendo tu uma mulher heterossexual, é curioso.

Não direi que a minha arte visa romper com os temas abordados nesse artigo, mas sim como o impacto de uma sociedade patriarcal não só afeta negativamente as mulheres, mas também os homens. É um ciclo de comportamentos e expetativas que alimenta o sexismo e a desigualdade. Ao analisarmos o género e as expetativas sociais, parece-me importante termos consciência dos problemas que os diferentes géneros enfrentam. É necessário olhar para as raízes e para a complexidade destas questões. Como é óbvio, não são só as mulheres que enfrentam o impacto de uma atitude patriarcal em relação ao género; todos os géneros são afetados.

Uma vez que a localização tem influência na noção de expetativa de género e na consequente definição de estereótipos de género, como interpretas a receção de Lisboa/dos portugueses a estas perceções e, além disso, ao teu trabalho provocatório?

Mudar-me para Lisboa tornou o meu trabalho mais explícito e agressivo. Não restam dúvidas sobre a relação entre as minhas experiências com as dinâmicas de género em Lisboa e a contundência do trabalho que eu crio. Antes de me mudar para Lisboa, creio que a abordagem aos estereótipos e às expetativas de género no meu trabalho era feita de forma um pouco mais abstrata, estando a reflexão sobre a política de género patente nos processos que utilizava ou na escolha do material.

Depois de me mudar para Lisboa, tenho vindo a constatar que não há qualquer subtileza na apresentação do tradicional desejo masculino de dominar, não há qualquer subtileza no sexismo. Esta tem sido a minha experiência quando nos apresentamos como uma mulher confiante num país muito conservador. Em Portugal, tenho visto horror nos rostos dos homens quando os desafio. É, no mínimo, algo alarmante, pelo que estas experiências provavelmente farão com que o meu trabalho seja provocante, uma vez que estou a transmitir as minhas experiências de uma forma franca e sem filtros.

Lisboa considera o meu trabalho provocador, mas não creio que Londres o faça. Talvez aqui seja mais, pois estou a erguer um espelho para questões universais, mas que cá são mais proeminentes. E há quem não goste nada disso, por ser demasiado acutilante, demasiado revelador. O meu trabalho tem um efeito polarizador, havendo quem fique entusiasmado com a abordagem aberta a estes temas, enquanto outros se sentem atacados. Sinto que aqueles que se sentem ameaçados talvez façam parte do problema.

Regressando ao facto de abordares estes temas num contexto sexual (um assunto que normalmente não é discutido de forma aberta, nem sequer olhado), como entendes o papel do público na criação de significado para o teu trabalho?

O sexo, a meu ver, é a área onde a conversa se torna mais importante quando se analisa qualquer questão relacionada com as expetativas de género e o impacto do patriarcado. Há pouco afirmei que o meu trabalho é autobiográfico e que, neste momento, está fortemente influenciado pelos meus próprios encontros sexuais. Refletir sobre o comportamento neste contexto íntimo diz muito sobre a forma como uma sociedade encara o género. A educação sexual é fundamental para impedir comportamentos abusivos e violência sexual; sem conversas abertas, jamais haverá qualquer progresso. Quando um tema é considerado tabu, e quanto menos se discutir o assunto, mais intenso se torna o problema.

Quando estou a trabalhar, não penso no público. Nesse sentido, a minha prática é bastante virada para mim. Quero que o trabalho se torne acessível a um público alargado e acredito que as exposições e os textos que lhes estão associados não devem ser excessivamente académicos. O papel do público é ter uma conversa com os seus semelhantes sobre os temas que estou a abordar. Quero que as pessoas falem de sexo. As pessoas apenas se sentem desconfortáveis a discutir o assunto porque são ensinadas a tal.

No que diz respeito ao futuro, tens algum projeto?

Mudei-me há pouco tempo para um novo estúdio, pelo que neste momento estou a focar-me na adaptação do processo criativo a um novo espaço. Há planos interessantes em curso para 2024, por isso fiquem atentos!

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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