Entrevista a John Romão, diretor artístico da BoCA Bienal
Inspirado por trazer à luz diferentes representatividades, geralmente ocultas ou sem oportunidade, John Romão dirige a BoCA (Biennial of Contemporary Arts) à volta de uma certa marginalidade, com a qual naturalmente se identifica, reflexo da sua história nascida no “lado de lá”. A programação da BoCA espelha tudo isso: a sua forma de pensar o mundo e as práticas artísticas enquanto território de conexão e diálogo com vista a uma maior humanidade. Seja pelos seus vários tentáculos, seja pela bienal que agora decorre até dia 15 de outubro em Lisboa e Faro.
De que mote nasceu a BoCA?
Como o nome sugere, BoCA congrega referências de vários universos, um encontro de territórios artísticos e espectadores. O mote começa com uma pergunta, transversal a todos os tempos e a muitas vozes, podendo ser interpretada não apenas como reflexo da sociedade civil, mas também à luz das artes: como é que podemos viver juntos? Pois é comum falarmos de artes no plural, porém persiste uma certa segmentação, sendo, não as artes a censurarem o acesso entre si, mas as nossas autocensuras a conceberem barreiras imaginárias entre os vários domínios artísticos. Ao questionar esta vivência conjunta tenho como objetivo cruzar públicos de interesses e especializações distintas, que possam assim desenhar uma coletividade pela diferença. Como resposta a esta premissa edificámos um projeto que habita um lugar de fronteiras e cruzamentos entre territórios de visibilidade, todo ele trans na sua identidade – transdisciplinar, trans-territorial, trans-geográfico, trans-espacial. Parte do epicentro em Lisboa para se estender à colaboração com outras cidades a cada edição, absorvendo ainda várias geografias na capital. Acrescido de um cruzamento artístico quando instigamos artistas consagrados em determinadas disciplinas a enveredar por outros caminhos pela primeira vez; solidificando a interseção entre os públicos interessados pelo formato ou pelo percurso dos artistas a se encontrarem para refletir sobre o mesmo objeto artístico.
Um ecossistema cultural e sinérgico entre vários pontos geográficos é, de facto, um dos grandes atributos da BoCA. Que fatores ditam essas escolhas?
Na primeira edição a BoCA, decorrida entre Lisboa e Porto, interessava-me oficializar a ligação já existente entre as duas capitais, em torno de uma circulação de projetos que é recorrente nas artes performativas (sobretudo teatro e música), e expandi-la a outros tipos de performance ou às artes visuais. Mais tarde surge Braga onde cooperámos com dois equipamentos culturais muito fortes e com os quais me identifico – o Theatro Circo e o Gnration – reforçando a ligação ao norte e tirando partido da circulação de públicos já existente entre Porto e Braga. Na terceira edição rumámos a sul para experimentar outras geografias através da parceira Lisboa-Almada-Faro, e cuja capital do Algarve se repete este ano fruto de uma relação muito positiva no passado.
Estas experiências geográficas permitem-nos encontrar espaços muito específicos, onde nascem projetos que marcam a história da BoCA ao proporcionarem, pelas suas características, uma abordagem curatorial e artística exclusiva e fecunda. Um desses casos foi o Mosteiro de Tibães, onde uma criação de Angélica Liddell resultou num projeto que ainda hoje circula mundialmente; ou a primeira exposição escultórica de João Pais Filipe na Casa do Volfrâmio. Estas colaborações são uma oportunidade para nos aproximarmos e apaixonarmos por espaços não tão conhecidos e, simultaneamente, podem ser estratégicas: ao apresentar Angélica Liddell em Braga estimulámos efetivamente a deslocação do público portuense.
O projeto The Defense of Nature caracteriza-se por plantações anuais num modelo colaborativo entre populações locais e comunidades artísticas e académicas. Como espera a BoCA avivar consciências, inspirar comportamentos e conduzir a mudanças efetivas?
É comum aos projetos artísticos, sobretudo performativos (um dos principais pilares da BoCA) uma certa efemeridade, e este projeto nasce precisamente do interesse em criar algo que pudesse ter uma relação estendida no tempo. O facto de se estender a 10 anos – até porque é necessário dar tempo à natureza para prosperar – opõe-se ao típico objeto artístico que se pensa, instala, fruí e desaparece. Aqui a obra de arte surge ao longo de uma década de trabalho comunitário e as obras são instaladas/plantadas por cada um, o que fortalece a relação pessoal com o objeto artístico/natural criado.
Contudo, a grande mudança de paradigma deste projeto é o facto de conciliar um gesto artístico com um gesto ecológico, capaz de criar uma corresponsabilização do ambiente/ecologia e das artes, permitindo que dois universos aparentemente desconexos possam cooperar. Neste caso envolvemos os municípios de- Lisboa, Almada e Faro, cujos departamentos de cultura e do ambiente e espaços verdes tiveram que dialogar e operar em conjunto. A BoCA assume, então, a função de unir e curar feridas abertas. Ao fundirmos os departamentos do ambiente com a vertente artística, que naturalmente provoca reflexão e tem poder criativo, desencadeámos a participação local, o que acredito ser capaz de mover mais, gerar mais e relacionar mais.
Partindo desse projeto e pensando de forma geral, como veem o nível de engajamento do público na cena artística?
A BoCA desenvolve projetos muito diferentes, exatamente porque nos interessa testar várias formas de engajamento e relação com o objeto artístico. Um bom exemplo é o projeto que decorre na praça de carvão do Maat, em que convido um artista a pensar uma instalação que depois terá uma ativação performativa ou um programa público variado. Aconteceu em 2021 com a Grada Kilomba e este ano com Gabriel Chaile, e envolve sempre diferentes públicos, seja aquele que vem pela instalação artística, aquele que vem pelos momentos de ativação posteriores, ou o público de passagem, já que são eventos abertos e de entrada livre. Outro dado importante é o facto de ambos os projetos (2021 e 2023) estarem ligados a um passado histórico, transformando cada acontecimento num espaço entre tempos – por um lado de luto do passado, por outro de celebração de um presente e de defesa dos direitos humanos e liberdade. Vão pois, além da dimensão artística e, pelos seus temas e ocorrência no espaço público, são também fortemente políticos. E o mais marcante é que atraem um público representativo das temáticas levantadas, o qual geralmente está nas periferias e, através deste encontro e partilha, sente-se representado, com a cidade recetiva a si e aos seus problemas.
Na quarta edição da bienal, como define a máxima Presente Visível a intenção e a missão deste ano?
Trata-se de um conceito a partir do qual proponho que se leia a programação. É um comentário ao presente e às camadas menos iluminadas ou ocultas das grandes luzes de centro e de poder. Mais uma vez, intento trazer à discussão questões de identidade e representatividade, e refletir sobre a nossa relação com o presente, profundamente influenciada pela nossa experiência pessoal, enquanto sujeitos sociais, culturais, económicos. Nessa ambiguidade entre o que é visível e não visível, reflexo do nosso comprometimento com o envolvente, pergunto: O que é visível ou invisível e para quem? Olhar é uma escolha entre aquilo que focamos e o que excluímos do enquadramento do olhar. Quando híper atentos podemos reparar em detalhes não antes valorizados ou nunca vistos da mesma forma por outra pessoa. Enquanto o híper visível é tão exposto que facilmente se ignora; como acontece com coisas que não nos afetam diretamente ou que normalizamos, como o racismo estrutural. Debater hipervisibilidade nesta edição pretende colocar o peso em nós e nas nossas escolhas. Digamos que é um espectro na relação não só com o presente, mas também com o passado e a história, que muitas vezes nos definem.
Num balanço de 7 anos de BoCA, quais foram os pontos mais significativos na sua história?
Na BoCA há sempre um “risco”, já que nos baseamos em novas encomendas e num modelo de experimentação. Trabalhamos sem saber o que virá, todavia de forma desejada, cuidada e suportada por um sistema montado para que algo significativo possa acontecer. Por exemplo a artista e ativista cubana Tânia Bruguera, ficou marcada de tal forma pela criação de teatro pela primeira vez na BoCA, que agora vai continuar. Definimo-nos como uma espécie de playground, que não impõe as limitações tantas vezes exigidas aos artistas pelo mercado; e que se centra na experiência, não na sua comercialização. E este caráter experimental, que reforça a identidade da BoCA, dá espaço aos artistas para explorar e, eventualmente, entrar em territórios que de outra forma não entrariam. Por outro lado, as nossas relações institucionais conferem uma certa elasticidade a estas entidades, as quais deixam frequentemente boas marcas e uma abertura nos modos de fazer e de pensar à luz da atualidade.
E sobre o futuro, o que se perspetiva?
A ambição de termos mais e melhores capacidades financeiras que possibilitem a nossa progressão e de tudo o que temos vindo a demonstrar ser capazes. Com a certeza de que manteremos a nossa atuação em escala nacional e internacional, fazendo circular as comissões deste ano até à próxima bienal em 2025, e tecendo sempre novas relações com outras geografias de Portugal e do estrangeiro.
A programação BoCA 2023 pode ser consultada em: https://bocabienal.org/programa/2023/