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Ar(quite)tivismo

A meio do século IV a.C., Platão fundou uma escola de pensamento. Não inventou o nome que lhe atribuiu – designou-a como “Academia” porque existia num lugar pertencente a Academus. Nas Vidas Paralelas, o filósofo Plutarco descreve como Címon, um bom e belo general ateniense, foi “o primeiro a embelezar a cidade, com locais de entretenimento considerados nobres e elegantes, que pouco depois passaram a ser extraordinariamente apreciados.” Terá, de acordo com o biógrafo, plantado “plátanos na Ágora”, transformando a Academia, “de árida e seca, num jardim irrigado, que adornou com pistas de corrida livres e passeios sombrosos”[1]. O nome passará a associar ao lugar uma função, que ainda hoje aponta para um modo de conhecer, formas e ações onde se exercita o pensamento (a este propósito, ouça-se o breve discurso de acolhimento dos novos alunos proferido pelo atual Diretor da Faculdade de Letras de Lisboa, sobretudo a partir de 01:34).

Em 2001, Roberto Calasso afirmou que os deuses tinham abandonado a literatura. Que dela fugiram por serem seus hóspedes fugidios, por estarem de passagem. Serão deuses o pensamento? Facto é que o saber foi sendo cerceado: em vez do “jardim irrigado”, ladeado por belas árvores, passou a cingir-se de muros, paredes altas, quantas vezes salas de aspecto austero, opressivo, mesmo. Lugares de onde se vão esvaindo o estímulo para a reflexão, a vontade de debate, a prática de pensar. Os deuses – como convidados de passagem – parecem ter deixado as paredes, os lugares aos ínferos seres humanos, que deambulam, destituídos de centelha, entre corredores onde a beleza escasseia.

Hoje, estes lugares desdivinizados – dessacralizados –, aqueles que antes se identificavam como habitados por génios do pensamento, super-homens da racionalidade – como as universidades, por exemplo – deixaram de ter o exclusivo da atividade do pensamento. Este pulverizou-se, qual multidão de deuses em debandada, por um éter pontilhado. Mas o vazio onde paira o pensamento não é hoje uma ausência de lugar, mas a sua disseminação absoluta, a dispersão total, aquilo a que, em língua inglesa, se chama pervasiveness. É que a atividade do pensamento não consegue ser eliminada, não desaparece por se desabitarem os espaços que a tradição foi encerrando ao seu redor – antes se perpetua no regresso a uma ideia de ar livre, de multiplicação, de afirmativa presença imaterial. Nem o facto de poder ser produzido por excrescências humanas, como o são as formas de tecnologia capaz de articular enunciados passíveis de comunicar aquilo que se entende enquanto pensamento, o ameaça enquanto tal.

Pensar, então, não depende de um lugar, de um edifício onde se esteja. Nem o processo, nem os instrumentos, nem a informação que igualmente se entende por necessária à prática do pensar se encerram. Chilreante como o bulício dos pássaros a acoitarem-se para a noite, a atividade de pensar alastra-se. Democratizou-se. Sobretudo, deixou de estar confinada a mundos identificáveis como académicos, em locais de nome escolar ou universitário, atravessou muros de alvenaria e dinamiza-se hoje por ação de grupos autárquicos, associações da sociedade civil, comunidades constituídas mais ou menos espontaneamente; decorre em anfiteatros pequenos, galerias de arte, até ao ar livre, ou antigas fábricas. É praticada não apenas pelas sumidades académicas, mas por gente comum – os filósofos são cada um de nós. Qualquer pessoa (“qualquer”, desde que tenha acesso a um terminal informático ligado à Internet, saiba ler e entender o que lê – alguns pré-requisitos que não estão necessariamente ao alcance de todos) pode, em princípio, debater uma ideia; estas, por sua vez, surgem apresentadas em propostas de plataformas de investigação a partir de práticas sociais, ecológicas, comunitárias. Pensar é um ato de vivência política, no sentido em que se constitui enquanto prática de coabitação comunitária, urbana (sem que se restrinja ao “citadino”) – cada vez mais urgente e necessário.

Uma Academia de Ideias parece retomar o contorno de belo, de aprazível e de livre presente no lugar platónico. “Criada por dois irmãos no Canadá […] sem apoios nem afiliações com nenhuma organização ou universidade”, tem por objetivo “difundir a mensagem da liberdade e da consolidação individuais pelo maior número possível de pessoas”. Uma outra Academia de Ideias, apoiada por inúmeras empresas e organizações, dinamiza desde 2005 um “combate de ideias” em torno de sete princípios: liberdade de pensamento, de ação e de expressão; agência; o legado do Iluminismo na experimentação social e científica, assim como na ambição intelectual e no perpetuar da curiosidade; as artes liberais enquanto artes que se valem a si mesmas, tal como a educação enquanto fim e não meio para alcançar outros, distintos fins; as liberdades públicas (“civil liberties”), sem hesitações e no desafio a restrições arbitrárias; a racionalidade; e o “debate aberto e robusto, no âmbito do qual se interroguem, discutam e se digladiem as ideias”. A Noite das Ideias, iniciativa da Villa Albertine, uma rede de “artes e ideias” que se estende de França aos Estados Unidos constitui alternativa ao que descrevi acima. E certamente existem pelo mundo (pelo menos pelo mais próximo, ocidental mundo em que escrevo) iniciativas semelhantes que pugnam pela capacidade, pela vontade, pelo exercício do pensar. Não espanta que as artes (veja-se um dos princípios elencados no capítulo anterior) se embrenhem nesta prática, neste ensejo, nesta aptidão. Espanta ainda menos que a arte do espaço, a arquitetura, ganhe forma de debate de ideias.

É nesse embrenhar que se localiza – espaço de difusão etérea – o “Laboratório do Futuro”, transposto no contexto português como Fertile Futures, ou o entendimento que Andreia Garcia (curadora) e Ana Neiva com Diogo Aguiar (curadores adjuntos) tiveram daquela expressão laboratorial proposta por Lesley Lokko para a 18.ª Bienal de Veneza 2023. Afirmam os três curadores que a sua interpretação da proposta da Bienal de Artes “convoca”, “para além de um conjunto de temas urgentes, um modo de fazer.” Assim, munidos de financiamentos vários – dos mais aos menos institucionais (Ministério da Cultura, Direção-Geral das Artes, publicações, produtores de vinhos, fábricas de tintas ou, helas!, universidades), constituíram uma equipa e engendraram “Assembleias de Pensamento”, para as quais convidaram “curadores não oficiais” (assim se apresentaram, em Faro, Eglantina Monteiro e Álvaro Domingues). Trata-se de sessões de debate entre esses convidados e a “sociedade civil” (outro modo de dizer “público em geral”), que formam uma autêntica prática laboratorial: livre, experimental, focada no exercício de reflexão enquanto exercício de reflexão e de potencial ação para a melhoria dos modos de vida. Parece complexo exercer modos de liberdade quando se ancora uma ação na dependência de apoios como os que indiquei entre parênteses. Mas, por sorte – ou antes, por saber –, o ato laboratorial que decorreu na Fábrica da Cerveja, em Faro (significativamente assim designada, sem que ali se tenha alguma vez produzido qualquer bebida), teve tanto de excecional como de promissor e de genuíno.

Na tarde de 2 de setembro, reta final de um Verão exigente, a muito numerosa assistência conheceu projetos, de eixo sobretudo arquitetónico ou urbanístico, centrado no tópico da água e em sugestões de ação, sobre lugares específicos. Não se exigia que as questões debatidas tivessem um locus preciso, nem identificável com o lugar onde se estava – também nisso, esta assembleia foi livre. A Ria Formosa ou as barragens do Barlavento algarvio, demandas urgentíssimas de quase nula solução, pelo tardio e pelo grave de que se compõem, estavam, mais do que presentes, presentificadas em cada um dos projetos que desfilaram e pediam debate. Este surgiu a partir de casos em que tal ação é igualmente necessária, i.e., que exige agência e consolidação ou fortalecimento comunitário) – exemplo do que a artista Maja Escher trouxe de intervenções eco-artísticas em torno da água, da chuva e do “volume morto” da barragem de Santa Clara (Odemira). Fez confrontar os espectadores com o belíssimo filme de Francisco Janes, Mira-Rio, que combina imagens do monumento de Pancho Gueddes, em Sagres, com planos de pormenor das mãos de um homem que as usa para amar a terra (António Rosa). Esboçou-se como processo laboratorial alternativo pelos Corpo Atelier e Ilhéu Atelier, conjunto de respostas poéticas a uma “incapacidade da Arquitetura” de chegar a respostas para os problemas complexos de algumas bacias hídricas, numa tentativa de “sensibilizar a consciência global”. O Algarve esteve, sim (e muito bem) representado por Alice Pisco e Rosa Guedes, da Plataforma Água Sustentável, e por Marta Cabral (Associação Rota Vicentina).

No debate final, um dos muitos arquitetos que compunham o público foi Gonçalo Byrne, cujas palavras resumiram o espírito de liberdade e urgência que ali se respirava: “É preciso repensar a arquitetura a partir de um artivismo fundamental.” O que pode ser traduzido como um impulso para a ação social, ecológica, consciente, que surja do pensamento arquitetónico – um “arquitetivismo”.

 

[1] Plutarco, Vidas Paralelas. Tradução do grego de Ana Maria Guedes Ferreira; Introd. e Notas de Manuel Tröster. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2021, p. 108. Disponível através desta ligação.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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