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Portreto de la Animo: Museu Nacional Soares dos Reis

Com o objetivo de convocar o debate e reflexão sobre saúde mental, ao abrigo da programação Arte & Saúde, a exposição Portreto de la Animo em exibição, até 12 de novembro, no Museu Nacional Soares dos Reis (Porto) resulta do encontro entre obras do acervo do museu e da Coleção Treger Saint Silvestre, uma das mais relevantes coleções privadas de Arte Bruta do mundo. Recorte dessa coleção, Portreto de la Animo, parte de um género artístico peculiar: o retrato e autorretrato, através do qual se estabelece uma ligação entre arte e saúde ao longo de um percurso por 150 obras de 99 artistas. Em depósito desde 2014 no Centro de Arte Oliva, (São João da Madeira) num acervo de 1700 obras reunidas, ao longo de 40 anos, por Richard Treger e António Saint Silvestre, a Coleção Treger Saint Silvestre revela-nos trabalhos de autores que atuam à margem dos circuitos artísticos convencionais, libertos dos cânones e influências formativas. Constituída a partir da noção de Arte Bruta cunhada por Jean Dubuffet, em 1946, para definir um movimento de contracultura produzido por pessoas sem formação artística e cuja alteridade social e mental os extraía das correntes dominantes da cultura, as obras presentes na Coleção Treger Saint Silvestre promovem uma reflexão sobre o conceito de arte, a descoberta por manifestações criativas livres e compulsivas, bem como um alargamento dos nossos horizontes artísticos. Expressando uma visão crua e destituída de artifício, a Arte Bruta – também designada por arte informal, raw art ou outsider art – teve expressão relevante entre pessoas marginalizadas que atuando à margem dos circuitos artísticos habituais, se encontravam num estado de reclusão – prisioneiros, eremitas, exilados, pacientes internados em hospitais psiquiátricos – e que procuravam na experiência artística uma forma de se libertarem e salvarem. Autores que criavam na clandestinidade, na confidencialidade, obras não reivindicadas como objetos artísticos sem fins monetários ou de autopromoção. Se o conceito de Arte Bruta surge por oposição à designada arte convencional, nos dias de hoje as fronteiras entre o que é considerado Arte Bruta e arte consagrada são cada vez mais indefinidas, levantando questões no âmbito da História da Arte: Não será de trazer estes artistas até então considerados outsiders para dentro dos museus? Não será de pensar a forma como classificamos as manifestações artísticas? Conscientes do papel relevante dos artistas e colecionadores que, sob a capa de Arte Bruta protegeram estas obras, este é o tempo de as trazer aos museus, tratando os seus autores como grandes artistas que são[1].

A partir do título da exposição, em esperanto, portreto de la animo – que em português significa retrato da alma – a mostra revela-nos o interesse curatorial em não retratar a realidade, antes a sensação de liberdade e intimidade, ideia que é reforçada pela frase do pintor Lucien Freud que, traduzida em vários idiomas, preenche o rodapé da sala de exposições temporárias do museu: A minha ideia de retrato vem da insatisfação que sinto com os retratos que se parecem com gente. Eu gostaria que os meus retratos fossem das pessoas, e não como elas.

Retratos e autorretratos enquanto instrumentos de exploração do mundo interior e das suas múltiplas expressões revelam-se-nos ao longo da exposição cuja intensidade e desconcerto são intensificadas pela própria cenografia – concebida pela dupla de designers Macedo Cannatà – em pequenos círculos a preto e branco que, engenhosamente combinados, se adensam e dissipam criando sensações de velocidade, multiplicidade e dinamismo numa evocação à Op Art, provocando um desconforto no visitante que reforça a experiência inquietante que a exposição provoca. A abrir o circuito expositivo, Wassergeist, lebt im Moor, 1950, da artista alemã Margarethe Held (1894-1981) apresenta-nos o retrato de uma figura solitária cuja intensidade das cores e linguagem instintiva despertam a nossa atenção. Como num regresso à figura egípcia, o retrato desenhado em perfil de esquerda e com o olho quase frontal de grande profundidade, paira no espaço com corpo de pássaro e braço como uma asa, sem mãos, numa obra de procura e revelação do mais íntimo de uma artista de dimensão espírita influenciada pelas sensações de um mundo invisível. Próximo destacamos a presença de desenhos do artista português de Arte Bruta mais reconhecido em Portugal e no estrangeiro, Jaime Fernandes, doente psiquiátrico com nível avançado de esquizofrenia que aos 66 anos produziu de modo inesperado esta forma de comunicação sobre diversos tipos de papel. Os três desenhos a grafite, marcador e tinta revelam-nos uma forma obsessiva de desenhar, em que gestos minuciosos e repetitivos dão forma a figuras humanas densas que de olhares intensos, bocas entreabertas e braços caídos ou levantados ocupam na totalidade as reduzidas dimensões das folhas de papel. Questões de raça, espiritualidade, sexualidade e identidade são exploradas nos trabalhos de Derrick Alexis Coard (1981 – 2017) afiliado à Healing Arts Initiative, significativos no cenário político americano atual enquanto forma de luta pela dignificação e imagem positiva da comunidade afroamericana no EUA. Através de retratos de homens negros e barbudos cujos olhos transmitem uma sensação de timidez e de vulnerabilidade, Coard exalta uma profunda espiritualidade que encontramos presente nas duas obras em exibição: The Manifestation e The Epiphany, ambas de 2014. Afirmando-se pela simplicidade de meios e domínio da cor preta observamos retratos de homens nus e musculosos, ícones negros homoeróticos acompanhados por motivos religiosos: na primeira obra um crucifixo e a estrela e David, na segunda a autorrepresentação do artista enquanto anjo coroado por um halo, azul e amarelo, símbolo frequente na pintura de ícones religiosos.

Um dos aspetos curiosos da exposição consiste na integração de obras pertencentes a diferentes coleções do MNSR que se enquadram na temática expositiva do retrato e autorretrato. Peças e objetos artísticos, testemunhos da cultura material, que adquirem novas leituras como é exemplo no campo da ourivesaria o Busto-relicário de São Pantaleão, 1509; no domínio da escultura destaque para a Máscara mortuária de Soares dos Reis,1889, retrato real e tridimensional em gesso da autoria de José Joaquim Teixeira Lopes, que se insere numa marginalidade ao perpetuar um momento de passagem; e a seleção de retratos dentro da coleção de miniaturas. Pertencente à coleção do MNSR, o retrato Mãe e filha, 1939 de Sarah Afonso (1899-1983), aproxima-se e estabelece um diálogo interessante com a obra de Jimmy Lee Sudduth (1910-2007) pela simplificação das formas e sintetismo da composição; presença de figuras que parecem levitar; fluidez dos membros que se entrecruzam e uma pureza e genuinidade que remete para o desenho infantil e que confere a ambas uma dimensão onírica.

Num outro núcleo expositivo, a fotografia surge enquanto expressão artística dentro do universo da Arte Bruta nos retratos e autorretratos performativos de Machcinski (1942-2022) que se transfigura em personagens fictícias ou apropriadas e de Bascoulard (1913-1978) nos quais questiona distinções e questões de género.

Terminamos com uma das obras mais impactantes quer pela dimensão e lugar que ocupa, como pelo universo e iconografia representados. The Celebration, 2006, da finlandesa Stiina Saaristo (1976) apresenta-nos num estilo irónico e caricatural um momento de desconforto- uma festa a que ninguém compareceu – e que suaviza com humor, recorrendo a objetos infantis e cenografia do universo da Disney. Trata-se de um autorretrato da artista, que surge transfigurada e de aparência grotesca, com roupas e acessórios de épocas distintas, numa obra que nos transmite perversidade, ironia e dimensão fantástica.

Concluímos mencionando a relevância da presente exposição que se impõe pela representatividade do que é a diversidade da Arte Bruta e as suas múltiplas expressões, que para além dos artistas clássicos já reconhecidos neste género artístico, dá-nos também a conhecer novos valores no universo da outsider art.

 

[1] Morgado, Pedro – Existe uma Arte Bruta? In Portreto de la Animo, Art Brut etc. (catálogo). Coedição: MNSR e Blue Book, julho 2023, p.35.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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