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Fenda

Completam-se em 2023 cinquenta e cinco anos do estudo de doutoramento que o então jovem antropólogo José Cutileiro concluíra em Oxford, e que viria a publicar em Inglaterra em 1971 com o título A Portuguese Rural Society (Clarendon Press). Ilustrado com fotografias de Gérard Castelo-Lopes e de João Cutileiro (irmão do autor), a edição em Portugal sairia como Ricos e Pobres no Alentejo apenas em 1977 e mostrava aspetos particulares de Reguengos de Monsaraz, tomando a povoação como exemplo de estudo e símbolo de uma estrutura de classes bem definidas, complementares, e de vivências distintas, mas, apesar de tudo, relativamente harmoniosas. Continua a aceitar-se como dado adquirido as divergências entre os detentores de poder (materializados como instrumentos ou meios de produção, ou como valores de aquisição – dinheiro, ações financeiras, o que seja) e os que dele são destituídos ou arredados; entre os ricos e os pobres. Continua a aceitar-se como modalidade de vivência – sobretudo no mundo ocidental, no dito “1º mundo”, onde tal diferença, apesar de reconhecida, é matizada, quando comparada com lugares classificados como “3º mundo”, segmento inferior na ordem socioeconómica – que tais divergências, mesmo profundíssimas, façam parte da estrutura que organiza as vidas das pessoas em comunidade. Até ao absurdo, recordado por Cutileiro em forma do relato de um popular, segundo quem “as pessoas aí dizem que não devia haver ricos; então, como não podia haver ricos? Se não houvesse ricos, como é que um homem podia chegar a um café, partir tudo e dizer ‘Eu pago!’?” A distância que vai de uma à outra classe é uma ferida e é enquanto ferida que serve para dela se rir, com riso amargo – ou para por ela se sofrer.

Colocar o dedo na ferida do mundo, nesse fosso que separa grupos sociais, camadas de gente, desequilibrando igualdades, exige que se veja a fenda que os desune: que ela seja identificada. O passo para tal identificação exibe pontos, locais onde os grupos desagregados se tocam. A narrativa absurda contada por Cutileiro transforma-se em chiste apontado com rigor a um desses lugares, aquele em que o rico existe para instituir um caos que, na sua sequência, ele se vanglorie em substituir pelo dinheiro. A sua razão de ser é deter um falso curativo para os males que, no fundo, provocou.

Pode a caridade ser entendida como o lado limpo de um cruel gesto de poder que institui uma fissura inultrapassável? A exposição organizada por Joaquim Oliveira Caetano e Francisca Portugal no espaço principal do Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida parece indicar que revelar a pobreza através da arte tem passado por exibir o toque dos dois lados nessa brecha escavada pela desigualdade – a perfeição do pretérito é garantida pela entrada do passado no presente, isto é, pela permanência da História no tempo atual, no tempo em que se produz a reflexão sobre essa História. Faz parte da missão da própria Fundação refletir através da arte sobre grandes temas do mundo em que hoje se habita e esta reflexão deve ser dinâmica, como, aliás, se sugere com a colocação das obras mais recentes (as do presente) no chão encostadas às paredes, num plano inferior às do passado, estas cuidadosamente fixadas ao nível do olhar (e mesmo, como no caso do Breughel, sob a transparência de uma placa de proteção e com alarme que dispara à aproximação do visitante).

O que revela a arte do passado? Revela, por exemplo, que, se a riqueza tradicionalmente se exibe, se ela faz por ostentar-se, a pobreza não é menos conspícua e não menos figurável na arte. Uma e outra condição, aliás, têm sido férteis motivos de representação nas mais expressões artísticas. Sobre a pobreza, para parafrasear o poeta britânico Wystan Hugh Auden, os Velhos Mestres jamais se enganaram. A sua máxima, verso do belíssimo poema Musée des Beaux Arts a propósito do sofrimento, aplicava-se a Pieter Brueghel, o Velho, pai de Pieter Brueghel, o Novo, cuja obra As Sete Obras da Misericórdia, aqui exposta, retoma uma gravura homónima completada pelo pai em 1559.

O quadro pintado pelo filho a partir da gravura do pai apresenta em relação àquela uma diferença fundamental, que faz com que talvez o pintor mais jovem tenha tido, afinal, mais acerto do que o seu antecessor na apreciação das obras misericordiosas que representou. Na gravura, as ações caridosas de dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, de vestir os que não têm roupa, de abrigar os sem-abrigo, de visitar doentes e prisioneiros e de enterrar os mortos são alegoricamente colocadas em redor da Caritas, configuração feminina do amor divino e máxima representação da misericórdia. A centralidade desta personagem, assim como os seus símbolos (o pelicano sobre a cabeça, o coração em chamas mão esquerda), identificam-na inequivocamente na imagem; a obra do gravador acrescenta-se ainda de uma legenda em latim, lida como preceito moral a conduzir quem olha e lê para que siga atitudes mais caridosas. O didatismo é inequívoco na sua imperativa gramática (traduzo livremente, da inscrição latina e de versões em língua inglesa): “Aguarda por que te suceda a ti o que a outros sucede: assim, e só assim, te sentirás movido a auxiliar, se fizeres teus os sentimentos daquele que pede ajuda quando está em dificuldades”.

O Jovem Brueghel, porém, não parece ter pretendido educar, nem foi misericordioso para com o observador: num gesto pictórico que, através da cor, ganha realismo quando comparado com o preto e branco da gravura, atirou à cara do espectador os famintos, os sedentos, os desabrigados, os mortos por enterrar, os despidos, os doentes e os aprisionados. Não representou a Caridade, não fez figurar a Misericórdia, mas deixou ilustrada com clareza a repulsiva miséria dos destituídos desta vida. No seu quadro, quem simboliza as obras misericordiosas são os que dela se vêm em necessidade – e cada qual é como um dedo firmemente apontado aos poderosos, aos donos de hábitos que acalentem, de comida que sacie a fome, de água que mate a sede, de lugares que reconfortem.

O destaque a esta peça, central na exposição, não deve fazer descurar a atenção a outras preciosidades apresentadas. Se Breughel surge para escancarar a miséria, fazendo das deformações físicas ou das repelentes figuras o vocabulário do abandono, talvez o quadro mais tocante (e é tocar que também pretende, esta fenda) seja uma peça anónima do século XIX, pertencente ao maravilhoso espólio do Convento dos Cardaes, um dos mais bem guardados segredos de Lisboa. Waif mostra uma criança embrulhada num pano, a vulnerabilidade de um bebé acabado de ser exposto à vida e ao destino de um órfão: que se trate de um quadro anónimo apenas adensa o desamparo ali retratado.

O passado, porém, pode estar tão próximo do hoje quanto se mostra numa outra poderosa imagem vinda do pleno século XX: Mercado de Trabalho”Alentejo”, de Manuel Filipe (exposto na parede, ou seja, no lugar de uma arte já canonizada, que tem o seu lugar cativo), desenha, no reconhecido traço neo-realista, uma cena da quase escravatura da lavoura a que muitos camponeses (como os descritos por Cutileiro, que comecei por invocar) eram sujeitos no “celeiro de Portugal” – mas ressoa em notícias que se prolongam nesta segunda década do século XXI, em que os forçados camponeses, oriundos de lugares tão distantes como o Paquistão, o Nepal, ou outras regiões de pobreza parecem arredados de qualquer representação que os dignifique.

À atualidade da arte, então, o que se reserva? Sobressaem nas peças contemporâneas (algumas ainda dos anos 90 do século passado, mas outras já de 2023) palavras de ordem, imagens que poderiam ter sido desenhadas para se exibir não numa galeria de arte, mas na caminhada de uma manifestação pública – encostadas à parede estão como que a postos para tal função. Poderá ser essa a característica que as torna mais audíveis, vociferantes, mesmo? A delicadeza do que se ouve na peça sonora de João Ferro Martins acompanha um piano instalado no meio de uma das salas – mas um piano feito de madeira vulgar, matéria barata, como se fosse essa a possibilidade de a pobreza alcançar um patamar de arte erudita, é um grito não calado. Mais do que o sarcasmo de Breughel (que persiste, por exemplo, como ironia na peça de António Olaio), a sensibilidade de vários anónimos antigos, ou uma visão religiosa da caridade, a arte atual é ativa, importuna para além do incómodo moral e impele à ação: Carlos No barra a entrada dos visitantes pela porta principal, quando acumula uma maré de pequenos abrigos para aves, peças pobres, mas que se impõem com a intransponível mensagem de que acudir aos pequenos e indefesos seres do mundo é um ato que obriga a mudar o rumo.

A exposição Fenda está patente até 29 de outubro na Fundação Eugénio de Almeida.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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