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Brincar no quintal da sua casa

Há como que uma alegria no reencontro dos homens com os seus lugares. Mesmo que um homem desapareça – porque morre, porque se vai –, mesmo que os lugares soçobrem (tanto mais do que se está habituado a aceitar; continuaremos a dizer “O lugar vai estar sempre ali”), o mundo ainda permite mais do que evidência de vida, sinais de fogo, desta reunião mágica entre um local e uma pessoa. (Quantas terão sido as vezes em que, nos breves anos que os meus caminhos cruzaram os de Manuel Baptista, nos saudámos dentro do Museu Municipal de Faro ou da Galeria de que ele foi o primeiro programador, uns metros adiante, a Trem, que desde 1 de julho deste ano, tão justamente leva o seu nome?). A obra de Manuel Baptista extravasa a cidade onde o artista nasceu e onde habitou grande parte do seu tempo – mas os extravasares, na vida das pessoas, são elásticos, não são de perda nem de desperdício. Sai-se, regressa-se, volta-se a sair, regressa-se outra vez, em percursos de revitalização e acrescento, mesmo quando o pilar do retorno se diz cansaço. Assim fez Manuel Baptista e assim revela esta mostra, preparada por João Pinharanda, que trabalhava junto do artista na preparação de outras exposições. É uma mágoa a morte, mas atenua-a saber que o levou sem que o Manuel tenha deixado de se perceber a si mesmo enquanto criador.

No texto de apresentação da exposição (e numa das visitas guiadas por si), o curador explica como encontrou num poema de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), poeta contemporânea de Manuel Baptista, o título para esta mostra que tem tanto de retrospetivo quanto de olhar para o futuro. Natureza paralela, poema publicado pela primeira vez na revista Relâmpago, em 1978, inclui um poema cuja estrofe final sinaliza uma operação de desnaturalização do natural através de processos gráficos. Referindo-se ao “musgo” do verso anterior, diz-se: “A sua textura tem a perfeição da forma a/ nelar do anel. Quando o pó se torna seco/ as raízes não o absorvem. Só bebem da ter/ ra quando a terra se humedece ou embebe.” A translineação força às incompletudes, a quebras de sentido apenas recompostas com a igualmente forçada reunião de versos (ou seja, à sua anulação enquanto versos). É como se, num quiasma de impossibilidades, um desenho que o pensamento aceita como natural esteja, de facto, truncado; e esse ser truncado assente na aceitação do pensamento sobre aqueles pedaços de palavras. As peças de Manuel Baptista mostradas em Natureza Paralela foram produzidas entre 1962 e 2022 (o artista começa a ver peças suas exibidas em galerias da capital e, logo depois, fora do país a partir dos últimos anos da década de 1950) e pretendem apontar, como amostras, para várias fases, ou ilustrar tópicos recorrentes na sua carreira de mais de 65 anos. Algumas delas erguem-se sobre esta dinâmica de desnaturalização e renaturalização do natural sugerida pelo poema de Brandão. Tal é percetível, por exemplo, em aguarelas feitas a partir das falésias da costa algarvia, das formas, das cores e dos apontamentos matéricos que constituem. As próprias cores, aliás, parecem resultar de estudos do material com que o artista terá preparado as tintas das aguarelas: na sua captação do natural, propõem uma abstração que implica a desnaturalização, mas cuja emergência enquanto obra ocorre com a reconfiguração dessa quebra, com a refamiliarização daquilo que se desfamiliarizou. Estão entre as peças mais antigas, mas, ao mesmo tempo, repercutem-se próximo do presente, sem terem deixado nunca de ecoar – veja-se Falésia I, exposta no claustro do edifício do Museu, concebida ainda nos anos 1960 e só dada como finalizada em 2011; as peças expostas nas paredes da Galeria Trem – Manuel Baptista, ou, nessa mesma galeria, os dois “arbustos”, um em madeira outro em plexiglas, esculturas de afirmativa média dimensão a funcionar como eixo do espaço da galeria e a consubstanciar a tridimensionalidade do que se retrata; ou ainda os desenhos com figuras de triângulos invertidos, quase no final do caminho da abstração, numa das salas do piso superior dos claustros no Museu.

Durante os anos da infância (a idade em que a linguagem verbal é inexistente ou incipiente, aquela em que está, precisamente, a ser formada – fans é o particípio presente do verbo fari, “falar”; com o prefixo de negação in-, a palavra latina infans designa alguém destituído de fala), para a criança nada do mundo é natural, no sentido de habitual; tudo é novidade e, logo, estranho. A peculiaridade deste período da vida é que a estranheza se recebe com grande amabilidade. A necessidade e a vontade de conhecer modelam o modo de acolhimento do mundo. Manuel Baptista foi um grande colecionador de brinquedos: começou por preservar os que pertenceram à sua própria infância e foi, vida fora, juntando aos seus muitos outros, de tempos que não os dele, de lugares que não os seus, assim aumentando à sua volta objetos infantis, objetos de brincar sem palavras – aqueles que, pouco de verbal dizendo, contam histórias, lembram desafios, valentias, alegrias. Compreende-se, pois, que tenha vertido para a sua arte esses sinais de um mundo cujos braços estão abertos ao que vem pela primeira vez, àquilo que, por mais estranheza que cause o seu surgir, se há de naturalizar. Isso sucede não apenas quando o artista incorpora figuras ou materiais a apontar para a infância, mas no lúdico com que interpela os visitantes desta mostra. A curadoria de João Pinharanda assumiu o gesto e o sorriso de Manuel Baptista e fez suceder, no cortejo das obras ao longo das salas, o jogo, a interpelação lúdica. Talvez o iniciar deste brincar comum esteja no espaço da capela, na grande esfera forrada a sisal, pião gigante a desequilibrar um suposto fulcro dos sentidos; prossegue, por exemplo, no trompe l’oeil do “leque” resultante da disposição, como se fossem raios de sol – já só metade – sobre um horizonte, de retalhos de tecido pintados; e talvez o seu o culminar seja o momento em que o visitante se depara com a vitrine dentro da qual se acomodam, entre cadernos com esboços de várias obras (algumas integradas na mostra, outras não), os óculos do artista. Os óculos convocam a pessoa e marcam a sua ausência; dizem, sem falar, que Manuel Baptista já não está ali, mas que o seu olhar perdura e se projeta, filtrado naquelas icónicas lentes redondas, em cada um dos trabalhos expostos.

Mostrar em Faro obras de Manuel Baptista (que vão desde as primeiras que expôs até àquelas em que trabalhava quando, em abril deste ano, o coração lhe parou) é uma forma de assinalar que a casa de um artista, por mais que seja o mundo, é, muito, aqui.

 A exposição Natureza Paralela, com a curadoria de João Pinharanda, pode ser vista até dia 1 de outubro em vários espaços do Museu Municipal de Faro e na Galeria Trem – Manuel Baptista.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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