Various Others 2023: uma reportagem
Haus der Kunst. Alte Pinakothek. Neue Pinakothek. Pinakothek der Moderne. Städtische Galerie im Lenbachhaus und Kunstbau München. Museum Brandhorst. Museum Villa Stuck. Kunstverein München. Rosa Stern Space. Ruine München. Espace Louis Vuitton. NS-Dokumentationszentrum. Kunstraum München. Arquive Artist Publication. ZIRKA Zentrum für interdisziplinäre Raum und Kulturarbeit. GiG Munich…
Estes são alguns dos muitos espaços institucionais por onde a arte e a História da Arte ocidental passam impreterivelmente, o que faz de Munique uma cidade cuja visita se afigura obrigatória para se compreenderem os múltiplos e intricados fluxos temporais da Arte.
Um fim-de-semana é manifestamente insuficiente para a profusão de programas, exposições e espaços que agitam Munique, pelo que a tarefa articuladora e negocial de iniciativas como a Various Others parece sempre hercúlea.
Desde 2018 que Various Others tem procurado traçar uma rede entre galerias, artist-run spaces e museus que marcassem a rentrée da arte contemporânea na cidade de Munique. Mas o programa é mais ambicioso que isso: alicerçado nas práticas da boa hospitalidade, e estabelecendo uma cultura de boa-vizinhança, Various Others propõe às galerias e instituições que sejam pontos-charneira no acolhimento de entidades estrangeiras, com o objetivo de diversificar ofertas – adotando aqui um vernáculo mercantilista – e estimular a curiosidade por práticas diferentes daquelas adotadas em Munique. O resultado é uma mistura heterogénea, mas cuidada, de artistas, exposições e programas curatoriais, não só nos museus e instituições, mas também nas galerias. Deste modo, agentes internacionais tomam conhecimento da cena artística de Munique – o principal foco da Förderung der Außenwahrnehmung Münchens als Kunststandort – e os agentes locais absorvem e bebem do que se pratica lá fora, num duplo exercício intercultural.
Nesta paisagem cultural vasta e densa, a que não escapa a história de uma cidade com um passado negro, de destruição, reconstrução e superação, o que se segue não poderá deixar de ser uma amostra do que se pode ver na sexta edição de Various Others.
Capital pulsante
Munique é a capital discreta de um estado federal alemão discreto. Sede de algumas das mais fortes empresas mundiais, como a BMW, Allianz ou a Siemens, Munique goza de um capital acumulado com o qual poucas outras cidades europeias conseguem ombrear. Capital=Capital. O festival IAA MOBILITY 2023 confirma-o. A principal artéria da cidade foi fechada ao tráfego automóvel para acolher stands de automóveis inteligentes, protótipos do que poderá ser a mobilidade do futuro, numa azáfama de visitantes, turistas e empresários a trocarem impressões sobre o que se julgava ser um negócio em declínio. A magia do capitalismo, que ofusca e obnubila qualquer pensamento crítico, era por demais evidente. O cromado fulgia sob um sol anormalmente abrasador naquela cidade; o aerodinamismo das linhas dos automóveis seduzia até o mais empedernido eremita; as luzes led e a propaganda pintavam um mundo verde, sem alteridades, polido, liso, lavado; a convenção social interpolada com a obrigação negocial, interpolada com o interesse político. Nas horas que antecederam a inauguração do evento, ativistas eram detidos antes de protestarem, antes de se juntarem, antes sequer de abrirem a boca, devidamente sinalizados e capturados preventivamente.
Este podia ter sido um dos fragmentos filmados por Sarah Morris, nessa dupla vertente documental e estética que nos faz dançar ao som de um tempo atomizado, profundamente individual, na anomia neoliberal que procura o lucro ou o Capital a todo o custo. No Espace Louis Vuitton, em As Slow As Possibles, esta podia ser uma cena acrescentada a Capital (2000) ou Strange Magic (2014) sobre a forma como as cidades incorporam ou codificam as ordens do poder, ou como a vida humana se deixou enredar por um sistema complexo, abstratizado, burocrático, em que o indivíduo se mostra um mero peão num jogo sinuoso e insidioso de bastidores – de ricos, ultrarricos e políticos num lado… e trabalhadores no outro.
Capital é um ensaio sobre Washington DC, o que se esconde das teias mediáticas da política americana da década de 1990 e o que serve de referência para um modelo de governação, administração, controle e conspiração.
Governava então o mundo ocidental um Bill Clinton acossado por escândalos sexuais, enquanto a sua política neoliberal prosperava numa globalização galopante, através da qual os produtos culturais faziam o seu percurso numa estratégia hegemónica americana apostada em conquistar o mundo. Das Sitcoms a Hollywood, da moda à fast food, da música aos gadgets, os tropos da Valley Girl, do homem de negócios de Wall Street, do cowboy acossado e do homem branco sucediam-se. Capital capta um momento como nenhum outro – a viragem do milénio, quando a aceleração dos tempos anunciava uma marcha cada vez mais veloz e Washington DC era tida como o paradigma da cidade do poder imperial moderno, com o The Mall, a Casa Branca, o Pentágono, o Complexo de Watergate, o Kennedy Center, etc.
Se Capital é um retrato sobre a sociedade americana, da política ao trabalho, Strange Magic é um retrato da alta sociedade francesa e da indústria do luxo e da moda. Serve de cenário a construção da Fondation Louis Vuitton em Paris, com as curvas sedutoras e a morfologia complexa desenhada por Frank Gherry. O Capital opera no olhar um fogo fátuo, uma chama mágica que alimenta desejos e compulsões, sonhos de grandeza e prosperidade, tentativamente ampliada neste filme pela banda sonora de Liam Gillick. O que começa por uma encomenda a Morris por parte da Fondation, em jeito laudatório ou apologético, depressa é subvertido pela prática artística, naturalmente avessa a compromissos ou limitações. Nada é neutral neste vídeo. Nada perpassa desinteressadamente no nexo narrativo de imagens de vídeo e curtas-metragens que se sucedem numa lógica crítica, pois que se gera aqui uma distância entre o que é explícito e o que é implícito. A própria sequência curatorial potencia e consolida a visão artística. Nesta perspetiva, não deixa de ser curioso ser a própria Fondation a mostrar este vídeo, sem temer enviesamentos ou julgamentos por parte dos espetadores. Demonstração de maturidade democrática, coragem ou constatação de um caminho unívoco sem alternativas, traçado pelo Capital neoliberal, que já nada tem a temer ou a perder porque singrou e cristalizou – eis a tensão ou dúvida que este vídeo sublinha em jeito sibilino.
Longe do centro da cidade, o bairro de Schwabing, constitui um exemplo perfeito da cidade neoliberal europeia do novo milénio, em que a propriedade privada se sobrepõe à pública, numa lógica de condomínios e gentrificações, apesar dos protestos e da contestação popular que se pugnou pela manutenção da atmosfera e ocupação boémias por que Schwabing sempre fora conhecido.
BABYLON SCHWABYLON, do grupo de investigação Shanzhai Lyric, é uma especulação peripatética por esta bolha residencial, que dispensa atritos e realidades contrárias à do bom gosto, de limites bem demarcados, linhas retas e logradouros de uso maioritariamente particular. Em BABYLON SCHWABYLON os espectadores seguem uma metanarrativa performativa construída segundo as regras da ironia, em que a contrafação e a imitação servem de recursos linguísticos para explorar os códigos do Capital. Ou seja, é um projeto densamente textual, como é aliás hábito nas práticas encetadas pelo artist-run space nómada que o produziu – o Ruine München.
Nesta comunidade improvisada, somos convidados a navegar as águas turvas do público e do privado, entre sebes vivas, arquitetura estandardizada de acabamentos de luxo, paisagens longínquas de um perfil citadino moderno que se projeta para as alturas, e bazares improvisados de t-shirts recolhidas nos mercados de Shanzhai, que escrevem toda uma poética insólita e autoafirmativa, de palavras de ordem, marcas de luxo mal escritas, erros ortográficos e traduções de fraca qualidade. A Babilónia de Shanzhai Lyric é esta cidade fragmentada, de povos e classes votadas ao desentendimento e à discórdia, um castigo divino que se aprofunda conquanto mais iníquo e desinspirador se afigura o futuro para o qual coletiva e acriticamente caminhamos.
As galerias e as práticas da boa hospitalidade
Do ponto de vista galerístico, houve uma preocupação em aproximar a prática mercantilística a uma prática curatorial, próxima do que é habitual nas instituições, com exposições coletivas e individuais cuidadas, juntando artistas de galerias e países distintos.
FLIP é um ensaio divertido, desafiante e bem-humorado na Jahn und Jahn, com a participação dos artistas Holly Hendry (da Stephen Friedman Gallery, de Londres), Anne Neukamp (da Gregor Podnar, Viena) e Andreas Schmitten (da Schönewald, Düsseldorf), cuja obra serviu de catalisador para estes jogos de superfícies, entre o exterior e o interior, entre o que se esconde e se deixa revelar. A maquete de Schmitten é uma ode ao absurdismo – um protótipo hilariante de uma cidade disfuncional, que surpreende a cada canto e recanto, com paisagem surreais e construções bizarras; Holly Hendry obriga o corpo a reposicionar-se perante as suas esculturas e o diálogo que estabelece entre interior e exterior, numa perspetiva lúdica que pede emprestado à linguagem da banda desenhada; e a linguagem simbólica de Anne Neukamp é um desafio à interpretação e à descodificação, da mesma forma que complexifica os planos espaciais e a leitura de objetos.
Na galeria ao lado, Jorge Queiroz expõe pela primeira vez na Jahn und Jahn de Munique as suas paisagens vibrantes e em perpétua metamorfose. Há uma qualidade atmosférica na obra de Queiroz que o aproxima de um universo entrópico. As sugestões de figuras ou objetos representados fundem-se e confundem-se na plasticidade da tinta e das cores. A representação de paisagens e figuras é uma sucessão de nuvens e manchas que se consolidam na mente e na imaginação, num percurso mais evocativo ou sugestivo do que explícito e direto. São imagens em devir, no limite, construídas pelo olhar do espectador e pela mão do artista, experimentando a surpresa, o erro, o desvio, a forma transmutável com o tempo, com a prática – ele, que afirma essa construção a vários tempos, de pinturas e obras que nunca terminam e podem aceitar uma ou outra reconfiguração no futuro. Sem ter um caráter retrospetivo, até porque se tratam de produções recentes, In between flatlands não deixa de ser uma síntese completa do seu trabalho e capacidades, depois de ter realizado um dos mais estimulantes diálogos no Centro de Arte Moderna do Museu Calouste Gulbenkian, com Arshile Gorky, em 2022.
Com o objetivo de explorar as várias formas de transcendência e os limites físicos e psicológicos do corpo, a galeria Max Goelitz apresenta failed transcende, uma exposição que junta a arqueologia do futuro de Niko Abramidis &NE, a fossilização da produção humana de Nicolás Lamas (da galeria Meessen De Clercq, Bruxelas), a investigação fenomenológica sobre alucinogénios de verve xamanística de Haroon Mirza e Helga Dóróthea Fannon, e os objetos fotográficos caleidoscópicos de Jeremy Shaw. Failed transcende é uma ascese rítmica, uma viagem heteróclita sobre os fenómenos que nos transcendem e sobre a busca de uma verdade ou autenticidade fugidia e sempre cambiante. O caráter imersivo das obras lança o espectador num périplo indagatório e psicotrópico sobre a dissolução da Cultura e da Natureza, ou, em alternativa, a liquefação de ambas.
Haus der Kunst
Das muitas exposições que Munique oferece nos vários equipamentos culturais, aquela que aparenta ser a mais radical será muito certamente Inside Other Spaces. Environments by Women Artists 1956 – 1976, na Haus der Kunst, que reúne uma série de instalações elaboradas por mulheres artistas cujas práticas forçaram a arte, a História da Arte e os espaços institucionais a novas reflexões e posicionamentos políticos. A condição espacial e atmosférica é sem dúvida determinante na exposição. Mas há toda uma componente feminina, se não mesmo feminista, de sensações, perceções e microperceções, que perpassa toda a exposição e que deve ser notada, pois que estamos a falar de artistas – Judy Chicago, Lygia Clark, Laura Grisi, Aleksandra Kasuba, Lea Lublin, Marta Minujín, Tania Mouraud, Maria Nordman, Nanda Vigo, Faith Wilding e Tsuruko Yamazaki – fundamentais para o desenvolvimento das práticas artísticas, com propostas arrojadas e profundamente originais. Yamazaki trouxe a experiência do teatro Gutai, Clark do corpo, Chicago da sensação de abandono e prazer, Wilding da lavoura feminina, e Kasuba da arquitetura uterina e dos espaços-limite, cheios de luz e cor, que desafiam a linearidade e o ângulo reto. Há uma entrega ao prazer e à descoberta, à alegria jovial e à reflexão que é imediata e que provavelmente nenhuma outra exposição feita por homens poderia explorar com tamanha ousadia e deleite. Inside Other Spaces não deve ser entendido como como um playground no meio do museu. De qualquer modo, transformar o museu num espaço de recreio, enquanto se faz a revisão da História da Arte Contemporânea, constitui um gesto corajoso e subversivo, num edifício de linhas austeras, sóbrias, cuja fisicalidade se parece impor a cada sala. Reduzir esta experiência a algo meramente lúdico seria sonegar ao discurso e nexo museológico um contexto artístico e histórico reativação continuada e renovada, conquanto a arte e a história continuem a exigir a sua existência ao longo dos tempos.
Noutra sala, outro ambiente muito distinto é ensaiado por WangShui em Window of Tolerance, no qual o corpo se torna agente participativo de uma realidade que já não é apenas mediada por ele nem por seres biológicos, mas que detêm, ainda assim, uma inteligência criativa. Dito isto, Window of Tolerance é uma cocriação entre humano e máquina, em que os limites da criação e da autoria se esboroam e um novo sentido para a produção artística é experimentado. As pinturas de alumínio e os vídeos operados por Inteligência Artificial fazem parte de um argumento maior em constante transformação ou construção, onde os corpos são emulações de programas de televisão e a arte é configurada segundo parametrizações e algoritmos obscuros, sem, no entanto, esquecer a mão que grava, desenha e pinta. O brilho baço e metalizado das pinturas e a cintilação dos painéis de led configuram uma ambiência ambígua – tão ambígua quanto a tecnologia que se nos apresenta à frente. Mas tal não deixa de ser igualmente curioso, como quem se cruza com um organismo cibernético, estranho, surpreendente, em viva formação.
Munique-Atenas
Warm Reflections on Black Ice é um momento introspetivo proposto pelo Rosa Stern Space, de Munique, em parceria com Saigon, um espaço dedicado à exploração sonora e às artes visuais em Atenas. Parte integrante do projeto curatorial GASTSPIEL, Warm Reflections on Black Ice refelte sobre um mundo disperso, a solidão e a interação humana. Com a participação de Ellie Antoniou, Andreas Kassapis, Spiros Kokkonis, Jack McConville, Rallou Panagiotou, Alexandros Tzannis (curador da exposição) e Hanna Umin, esta é uma mostra que nos confia à contemplação e à intimidade, como quem olha para um espelho de água negra e profunda.
No ZIRKA – Zentrum für interdisziplinäre Raum- und Kulturarbeit, a programação desenvolvida por esta dupla transcultural adquire um caráter mais exploratório, celebrativo e efémero, com instalações, concertos de música experimental, performances e DJ sets. Slipping into Brightness contou com as obras de artista de várias nacionalidades, como Bogomir Doringer, Max Weisthoff, Rosanna Marie Pondorf, Alexander Scharf, Kalas Liebfried e Anja Lekavski.
Various Others 2023 conta com a participação de 27 entidades, 25 exposições e cerca de 200 artistas de todo o mundo. A programação decorre até ao próximo dia 24 de setembro.
A Umbigo viajou a convite de Various Others.