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Para Aurélia: Desenhos de Fuga no Museu do Porto – Casa Marta Ortigão Sampaio

No âmbito dos 157 anos da data de nascimento de Aurélia de Sousa (1866-1922), o Museu do Porto inaugura Para Aurélia: Desenhos de Fuga, com curadoria de Cristina Regadas e Rita Roque, na Casa Marta Ortigão Sampaio, evocando a artista portuense, através de um nova conceção expositiva da coleção, colocando obras de Aurélia em diálogo com as de sua irmã, Sofia de Sousa (1870-1960), onde retrato e autorretrato, paisagem e cenas do quotidiano reverberam, lado a lado com intervenções de duas artistas contemporâneas residentes na cidade, Ana Allen (n.1985, Porto) e Jiôn Kiim (n.1982, Busan, Coreia).

A conversa entre as artistas surge do encontro inédito com dois cadernos de desenhos de Aurélia, mas também do outrora espaço doméstico, que nunca fora habitado, encomendado por Marta Ortigão Sampaio ao arquiteto José Carlos Loureiro, bem como da coleção, trespassando as fronteiras do seu entendimento, em que se conjugam de um modo warburguiano, vários tempos, práticas artísticas, simbologias e dispositivos instalativos, que se vão articulando numa lógica de dentro para fora, de casa para o mundo, numa relação entre paisagens e cenas domésticas, olhares e gestos, abstrações e alegorias, luz e escuridão, campos e contra-campos, numa espécie de fuga, aludindo ao título da exposição.

Nas duas salas de pintura, consonâncias e dissonâncias proporcionam diferentes ritmos, olhares e reflexões perante as obras de Aurélia e Sofia. Cenas do quotidiano feminino burguês, como a leitura, a pintura, ou o bordado, são retratadas em ambientes soturnos, sobressaindo-se o chiaroscuro, ou pormenores de objetos e figuras voltadas de costas para o passante, revelando uma solitude, silêncio e contemplação, em enlace com retratos e autorretratos de semblantes sérios e reflexivos. Por outra via, rostos de sorrisos largos e rasgados, assim como paisagens de zonas ribeirinhas, marítimas e rurais, figuras de trabalhadoras e trabalhadores, pintadas com uma outra cor e frescura, demonstram uma nova energia, face ao mundo das artistas. De acordo com as curadoras no texto que acompanha a exposição: «(…) olhares longínquos e outros fixos que nos interrogam, outros ainda que nos convidam a sorrir. Uma reverberação incandescente, entre claro-escuro, sombra – enigma de desejo –, e elementos atravessados pela luz».

Olhares, gestos e elementos, que deixam rasto. Transmutáveis, também nos dois cadernos de artista de Aurélia de Sousa, mote para o projeto expositivo, conectando-se assim vários tempos, formas e materialidades. Os dois documentos, exibidos pela primeira vez, são apresentados em projeção dítica, quer pela mostra dos objetos em si mesmos, como através de imagens em movimento, marcando as singularidades dos exemplares. Um, mais pequeno, com 41 desenhos concebidos entre 1892-1894, e outro de maior dimensão, com 30 desenhos, realizados na Académie Julian, em Paris, entre 1900 e 1901, aquando da estada da artista na instituição de renome.

Os desenhos-pinturas de Ana Allen, pensados enquanto instalação, prolongam a noção de fragmento da paisagem, observada nos cadernos de Aurélia, aludindo a reflexos na superfície do rio Douro, pelas pinceladas que se estendem até ao infinito, enfatizadas pelos suportes da tela expandida para além das paredes do espaço expositivo, como no óleo sobre papel tela, Espectro de Rio (2023), ou como no óleo sobre tela Nuvem (2023), em que a abstração, destaca as nuvens, enquanto espelho da natureza, ou ainda Barco-Esqueleto (2023), óleo sobre papel tela, em que o elemento náutico se vai diluindo no nevoeiro embrenhado nas águas do rio, qual visão fantasmagórica.

Jiôn Kiim, atendendo aos desenhos de elementos naturais de Aurélia, recolheu amostras da flora do jardim da casa e de praias do Porto, juntando diversos pigmentos, repercutindo movimentos vegetais e marítimos, estendendo o gesto com representações do alfabeto de mãos, ou de personagens quiméricas, em múltiplos suportes, materiais e ambientes instalativos, como Dois cães a ladrar, Ta Tara e Ta Ta Ta (Dança Mendicante), Lava-brancos e Passagem, um conjunto de telas de 2023, com pinceladas suaves e delicadas, como uma dança improvisada. Contudo, a instalação Tableaux Vivant (2023), em que máscaras disformes e translúcidas, lembram espíritos, evocando a dialética do teatro japonês Noh, que junta canto, pantomima, música e poesia, encontram-se lado a lado com fotografias de família da coleção. Imagens dispostas, enquanto altas imagético (segundo o texto curatorial), composto por cenas do quotidiano, interiores e exteriores, retratos de família e individuais, arquiteturas e naturezas, simbolicamente documentos, memórias, ou arquivo, numa analogia a toda a exposição e envolvência da Casa-Museu, ecoando reverberações de Atlas Mnemosyne de Aby Warbrurg. Por último, a instalação de Jiôn, Das Denken ist ein Handwerk (o pensamento é um ofício, segundo o filósofo alemão Heidegger), em consonância com o texto curatorial, remete para a noção de que «trabalhar com as mãos é o ofício que torna o pensamento possível», materializada por um conjunto de pinturas encrostadas nas estantes da biblioteca, convivendo intimamente com os livros, prolongando, de certa maneira, o corpo do visitante no espaço.

Entre as galerias, uma sala de fotografia, com aparelhos fotográficos e instrumentos associados à pintura e ao desenho, mas também um conjunto de imagens estereoscópicas, acrescenta uma outra dimensão à exposição, frisando um ambiente burguês oitocentista, recordando o significado da fotografia para as práticas artísticas pictóricas e não só, envolvendo e adensando a experiência do espectador em Para Aurélia: Desenhos de Fuga.

Ressalvando, que em simultâneo ao projeto expositivo, foi delineada uma programação paralela, com destaque para a performance participativa Sala de chá de Jiôn Kiim, em referência às cerimónias do chá da China, Japão e Coreia, mas também uma aula de desenho com Ana Allen, ambas no jardim da Casa Marta Ortigão Sampaio.

Para Aurélia: Desenhos de Fuga está patente até 28 de janeiro de 2024 no Museu do Porto – Casa Marta Ortigão Sampaio.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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