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O tempo das árvores de Paulo Neves, em Serralves

A relação entre arte e natureza é primordial e a segunda sempre constituiu um ponto de partida e uma das maiores referências da criação artística. O conceito de mimésis, desde a Antiguidade Grega, reporta-se à representação do mundo e da vida, e a arte, durante séculos, foi entendida enquanto forma de imitação. Assim sendo, propiciou-se a consideração e a apreciação estéticas do universo do natural.

Nos últimos anos, em grande medida por reação ao domínio tecnológico e à crise ambiental, testemunha-se um progressivo retorno à natureza, expresso, nomeadamente, através da reaproximação e da revalorização dos vários elementos e ambientes naturais. Este desígnio observa-se nas mais várias esferas, das quais se destaca a artística.

Ocorre que, na arte, tanto do passado como do presente, possibilita-se o encontro, ou mesmo a convergência, entre o natural e o artefacto, a forma orgânica e a inorgânica, a matéria-prima e a que não o é. Em suma, a criação artística pode constituir a ocasião de uma relação dialética entre o humano e o natural. Assim se observa na obra de Paulo Neves, da qual distintos exemplares se expõem, agora, na zona do Parque do Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

Paulo Neves é uma das mais relevantes figuras da escultura contemporânea portuguesa, autor de centenas de obras públicas, a maioria das quais se distribuem de norte a sul do país. Tem, na sua base de trabalho e processo criativo, a tradição da escultura, distinguindo-se pela sua forma de manobrar o material. Detém admiráveis competências artísticas, criativas e estéticas e uma rara relação, próxima e íntima, com a matéria, que provém tanto do respeito que por ela cultiva, como pela capacidade de a olhar, interpretar e compreender como objeto estético.

O artista produziu as suas primeiras peças em lenha e, desde então, elegeu a madeira como o seu material criativo privilegiado. Na atual exposição, com inúmeras obras originais, concebidas exclusivamente para a ocasião, o motivo central a partir e em torno do qual as peças emergem é, precisamente, a árvore. Paulo Neves optou por castanheiros, carvalhos e choupos, três espécies autóctones portuguesas que, apesar de igualmente robustas, resistentes e elegantes, são suficientemente particulares de modo que, mesmo quando trabalhadas, esculpidas e polidas, preservam a sua singularidade e mantêm-se reconhecíveis. Enquanto árvores centenárias, e sob o título O tempo das árvores, comemoram o tempo do Parque de Serralves, justamente, os seus cem anos.

O artista somente utiliza árvores que já se encontram no final do seu ciclo de vida, preferencialmente caídas nas florestas. De seguida, o seu processo plástico opera em semelhança ao desmembramento de um corpo, na medida em que todos os recortes de um mesmo tronco são tratados e trabalhados como órgãos pulsantes e autónomos. De certo modo, atenta a ressuscitá-los, como se vê numa obra composta por pequenos fragmentos de um carvalho que, como que suspensos, não estão fixos, mas, ao invés, móveis, vivos.

Destaquem-se também duas outras magníficas peças, imponentes raízes invertidas que, como indica Manuela Hobler Kaempf, a curadora da exposição, remetem para cérebros destruídos e incapazes de comunicar. Situadas na Alameda dos Prados, dialogam com uma outra obra do artista, instalada proximamente, no Jardim Maria Nordman. À imagem de uma espécie de pequena floresta de vários, longos e esguios ramos, assemelham-se a escadas, dirigidas ao céu.

Mais abaixo, entre o Pátio da Nogueira, o Celeiro e o Lagar distribui-se a restante exposição. Nas inúmeras esculturas aí exibidas sobressai o contraste entre o exterior escuro, ou negro, dos troncos, alguns deles carbonizados pelo artista, e o interior claro, preservado no seu estado original, intocado e nobre. A superfície da madeira apresenta-se minuciosamente esculpida, sendo que as suas formas curvilíneas vêem-se acentuadas por traços e linhas inferidos pelo artista, ora delicados, ora profundos. Desta forma, a árvore é explorada e trabalhada até ao seu âmago e embora consista num dos elementos da natureza mais elementares e familiares, revela-se passível de contemplar e experienciar sob novas perspetivas.

Como explica Paulo Neves, todas as árvores que utilizou providenciaram, durante centenas de anos, sustento e sombra a humanos, animais, micróbios e fungos, enquanto enfrentavam calor e frio, tempestades, pragas e catástrofes, nomeadamente incêndios e os efeitos da desertificação. Em consequência, embora as três espécies escolhidas pelo artista sejam das mais comuns no país, têm vindo a extinguir-se, de tal modo que somente se encontram em maior abundância em parques naturais ou zonas protegidas.

Sobre as motivações do artista, sobretudo no que diz respeito ao corpo de trabalho que agora se expõe em Serralves, sublinhe-se que reconhece a importância e a urgência da consciencialização e da sensibilização para as questões ecológicas, para a crise ambiental e a destruição maciça das áreas florestais, cujas repercussões não se revelam somente aqui e agora, isto é, a nível local e a curto prazo, dado que interferem com os ecossistemas e com a vida na Terra. Apelando à nossa responsabilidade perante a natureza, a obra de Paulo Neves é pertinente, valiosa e, acrescente-se, inequivocamente bela.

A exposição, O tempo das árvores de Paulo Neves, está patente até 30 de setembro em Serralves.

Constança Babo (Porto, 1992) é licenciada em Fotografia pela Escola Superior Artística do Porto e Mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Conta já com um relevante número de textos críticos, maioritariamente publicados na revista online ArteCapital, desde 2015 até ao presente, com alguns textos de folhas de sala relativas a exposições em galerias, assim como com a produção de press releases. A par do trabalho de escrita, dedica-se, igualmente, ao trabalho fotográfico de exposições e eventos de arte.

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