Top

Descuradas: Obras da Coleção Norlinda e José Lima no Centro de Arte Oliva

Descuradas, patente no Centro de Arte Oliva, com curadoria da dupla de artistas Sara & André, visa desvendar as produções artísticas da Coleção Norlinda e José Lima, nunca apresentadas publicamente, desde a sua integração no acervo. A Coleção privada, iniciada em 1980, é uma das maiores de arte contemporânea do país. É um projeto invulgar de continuidade, multidisciplinariedade e amplitude cronológica em Portugal, compreendendo um período de aproximadamente cem anos, com um pendor na produção artística mais recente, destacando-se pela variedade de suportes e meios, representando artistas nacionais e internacionais, bem como emergentes e consagrados. Em depósito de longo prazo no município de S. João da Madeira desde 2008, está na génese do Centro de Arte Oliva, inaugurado em 2013. Apesar de ter sido apresentada, pelo meio de uma programação regular de exposições temporárias na instituição sanjoanense, assim como através de parcerias com o CCCB de Castelo Branco ou o CAA de Águeda, apenas para citar alguns exemplos, há mais de três centenas de obras que permanecem ocultas do público.

«Numa das primeiras conversas – telefónica – que norteou a realização desta exposição, José Lima dizia-nos algo como: “os curadores escolhem sempre as mesmas, eu tenho alguns espanhóis, por exemplo, que nunca foram mostrados e que gostava muito que pudessem ser vistos” …» Explica a dupla de curadores, no texto curatorial, sobre a origem do enquadramento concetual do projeto expositivo. De facto, em Descuradas são expostas obras que ainda não foram exibidas, por não terem sido preteridas pelos curadores convidados anteriormente, assim como novas aquisições, mas também produções artísticas da residência dos colecionadores. Nem todas as obras foram exibidas nesta mostra, pois segundo os curadores, o espaço não o permitiu, devido à grande quantidade de produções, mas também por umas serem mais da ordem do ilustrativo, outras consideradas académicas, algumas próximas das artes decorativas e as restantes em estado de conservação limitador, ressalvando uma obra da sua autoria, enquanto artistas, devido a uma jocosa regra de que quem é artista-curador e vice-versa, não deverá expor as suas obras numa exposição comissariada por si.

A exposição apresenta-se, como um dispositivo semelhante a um acervo de museu ou de galeria de arte, com a maioria das obras dispostas em gradeamentos específicos para a conservação de pintura. Neste caso, estão muitas vezes sobrepostos, sendo possível perscrutar o engradado das telas, com escritos dos autores, como título, assinatura ou data, lado a lado, com peças penduradas em paredes pintadas ao estilo das grades vistas anteriormente. Igualmente, se denota alguns núcleos, não conforme um procedimento museológico, nem cronológico, mas tendo em conta formas, cores, tipologias, figurações ou temáticas. Vejamos um de influência Pop, com obras de João Nora, ou Nuno Viegas, outro de estilo mais paisagístico, do natural, ao industrial e urbano, explanado com produções de Ana Marchand, Serse, João Falcão Trigoso, Tânia Ferrão, Susana Gaudêncio, ou Alexandre Farto (VHILS), seguindo-se um grupo de pinturas abstratizantes, com obras de José de Guimarães, ou dos ditos espanhóis Juan Navarro Baldeweg e Rafael Canogar, mas também outro de teor surrealizante, com esculturas de Cruzeiro Seixas. Do mesmo modo, frisamos um conjunto dedicado aos cães, com obras de Sofia Torres, Ana Cardoso, ou André Cepeda, um grupo consagrado a geometrias, com Manuel Caeiro, Fátima Santos, ou Joaquim Bravo, e uma zona com destaque para a fotografia, nomeadamente de José Maçãs de Carvalho, Daniel Malhão ou Valter Vinagre. Não descurando, Area (Program) (2019) de Diogo Pimentão, a escultura de ferro e espelho Sem título (2005) de José Pedro Croft, e o núcleo que integra Preguiça (n.d.) de Rosa Ramalho, Sem título (n.d.) de Álvaro Lapa e Bolor Pólen IV (1998) de Rui Chafes. Sendo que ainda importa ressaltar, um piscar de olhos à reflexão acerca do ato de colecionar em Sem título (I’m too poor to be a collector) (2021) e Sem título (Take care of your belongings) (2021) do artista, curador e escritor Kenny Schachter.

O ato curatorial de Sara & André em Descuradas, pelo modo como apresentam um dispositivo expositivo lembrando um acervo museológico, geralmente oculto do grande público, refletindo simplesmente sobre o ato de colecionar, salvaguardar e apresentar obras de um espólio, independentemente do conteúdo e não através de uma noção objetual específica, reunindo um conjunto de práticas artísticas por forma a veicular essa ideia, insere-se num âmbito de projetos de curadoria que a dupla tem vindo a realizar. O Colecionador de Belas Artes (Galeria Quadrum/ Galerias Municipais, Lisboa, 2022), o ciclo de exposições Curated Curators (Zaratan – Arte Contemporânea, Lisboa, 2017), a que se seguiu a edição Uma Breve História da Curadoria (Documenta, Lisboa, 2019), em referência a A Brief History of Curating (2008) de Hans Ulrich Obrist, ou Inquérito a 263 Artistas (edição especial da Revista Contemporânea, 2021), denotam uma análise acerca da curadoria, do design expositivo, mas também do arquivo, tal como em Descuradas, especificamente sobre o estudo, a história e a cultura da museologia em si mesma.

O famoso curador suíço Hans Ulrich Obrist entende que «Fazer uma coleção é encontrar, adquirir, organizar e guardar itens (…). É também, inevitavelmente, uma forma de pensar o mundo – as conexões e os princípios que produzem uma coleção contêm suposições, justaposições, descobertas, possibilidades experimentais e associações» [1]. De acordo, colecionar é um método de produção de conhecimento. Um colecionador ao adquirir obras para o seu espólio, escolhe umas, em detrimento de outras, colocando-se segundo um determinado ponto de vista, modo de pensar e de estar na vida. Aliás, o comissário norte-americano Seth Sieglaub, compara um colecionador, a um curador, pela forma como desempenham um papel fundamental no processo de apresentação de produções artísticas, tomando decisões relativamente à maior ou menor visibilidade de uma coleção, ou de determinadas obras [2]. No seguimento, Sara & André em Uma Breve História da Curadoria (2019) entendem o ato curatorial, de acordo com o curador Jens Hoffmann, enquanto algo que «tem sido associado à produção de argumentos originais através da apresentação de objetos e obras de arte» [3], acrescentando que os curadores tornaram-se autores. A exposição no Centro de Arte Oliva, entende-se assim, como um projeto autoral, em que a sua concetualização é definidora do que é apresentado, através de um grande número de obras da Coleção Norlinda e José Lima, que foram descuradas até então, não se destacando per si, mas enquanto conjunto agregador, por vias estéticas, formais e figurativas, realçando um gesto incisivo sobre o ato de colecionar e de fazer curadoria.

Descuradas está patente no Centro de Arte Oliva até 17 de setembro de 2023.

 

[1] Hans Ulrich Obrist (2015). Ways of Curating. Londres: Penguin Books.p.39.

[2] Hans Ulrich Obrist (2009). A Brief History of Curating. Genebra; Dijon: JRP| Editions; Les presses du réel.p.129.

[3] Sara & André (2019). Uma Breve História da Curadoria. Lisboa: Documenta Solar Crl.p.18.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)