In my own language I am independente: Carla Filipe em Serralves
In my own language I am independente reúne o corpo de trabalho desenvolvido ao longo de 20 anos por Carla Filipe (Vila Nova da Barquinha, Portugal, 1973), com curadoria de Marta Moreira de Almeida, diretora-adjunta do Museu. Tal como a memória não é ordenada, o impulso arquivístico de Carla Filipe apresenta-se de forma heterogénea e não-hierárquica. Entre o álbum de família e o arquivo policial, esta exposição é simultaneamente um retrato antropológico e um autorretrato. Como um sismógrafo, a exposição identifica tensões políticas, económicas e sociais, do passado e do presente, extravasando o território nacional e gerando uma série de significados individuais e coletivos.
Carla Filipe cresceu nas casas da Companhia de Caminhos de Ferro Portugueses, construídas no início do séc. XX para albergar os guardas das Passagens de Nível e suas famílias. Através da convivência direta com este universo, a artista investiga questões como o isolamento social e a organização do território. As Casas Desejadas (2006-2011-2023) —um conjunto de seis marcos miliários que indicavam a distância da Passagem de Nível (P.N.) à Estação Ferroviária do Rossio— faz referência aos programas de habitação operária que, entre o tradicional conservador e o moderno internacional, surgiram para combater o problema social da habitação, incentivando o crescimento urbano do país. Além da sinalética da ferrovia a artista apropria-se do grafismo de cartazes sindicais do pós-25 de abril, constituindo O Memorial ao Vagão Fantasma (2011) (obra que esteve em exposição até 2 de maio no átrio do Museu), uma alusão a um sistema de segurança opressivo utilizado para impedir atos de sabotagem, na greve dos trabalhadores dos caminhos de ferro de 1919, para refletir sobre os direitos laborais e sociais. Ainda neste contexto, a artista apresenta numa das salas do museu uma série de polaroides, acompanhadas de apontamentos, entre o facto e a ficção, uma das quais documenta os vasos ajardinados na Estação de Campanhã, antes da REFER proibir esta dimensão humanista do trabalho. Dimensão que Carla Filipe reclama ao instalar Migração, resistência e exclusão (2016-23), no terraço do restaurante do Museu de Serralves, servindo-se do modelo da horta comunitária para debater sobre questões de ecologia e organização social — “de dentro do cimento, surge a utopia de transformar o cemitério urbano em vida.”1.
Na primeira sala da ala direita do museu dissolve-se a distância entre arte, design, investigação e ativismo. Obras como Paisagens Pedonais Noturnas (2020) ou Escape from Reality (2015), transformam esta sala num atlas, um império de imagens, que se estende às salas seguintes, ao estilo da WWW (World Wide Web). Aqui, testemunhamos a rutura entre amador e profissional, público e privado, passado e presente, realidade e ficção, e deparamo-nos com temas transversais à obra da artista como território, memória e identidade. Celas (2022) combina padrões de grades de conventos e retratos de mulheres como Carolina Beatriz Ângelo —membro do movimento republicano feminino, a primeira mulher portuguesa a realizar uma cirurgia e a votar, aproveitando um lapso na legislação eleitoral— para introduzir a História do Feminismo em Portugal. No centro da sala, uma ilha de almofadas com inscrições é resultado da investigação e mapeamento dos países que já desenvolveram direitos do artista. Amanhã não há arte (2019) convida o espectador a sentar-se sobre uma citação de Robert Smithson ou adormecer sobre o artigo nº 29, propondo um espaço de convívio para repensar a condição do artista, ao mesmo tempo uma crítica à apatia.
Se a primeira sala é maioritariamente gráfica, a segunda pode ser considerada uma sala de leitura. Ex-votos: domingo, cemitério anónimo e memorial aos ferroviários (2012), resulta da apropriação excertos publicados pela Companhia de Caminhos de Ferro Portugueses, na primeira metade do século XX, a que a artista sobrepõe comentários pessoais. Um conjunto de aide-mémoires que nos fazem viajar no tempo, passando por um dos primeiros momentos das lutas sindicais no feminino em Portugal – a greve das conserveiras de Setúbal (março de 1911) até aos sucessivos suicídios em linhas de comboio que ocorreram no período da Troika, e onde também podemos ler um poema do neo-realista Manuel Fonseca sobre um pintor que decide matar-se por ser domingo. Na mesma sala Bordas de Alguidar (2011-12), nasce do contexto da crise económica, emprestando o grafismo popular e caricatural, desenvolvido por Bordalo Pinheiro na viragem para o séc. XX, para tecer uma sátira política entre o passado pré-republicano e o presente neo-liberal. Critica-se a falta de investimento na cultura e na educação, através da figura do Zé Povinho, acompanhado de personagens como Cavaco Silva, Passos Coelho e Angela Merkel.
No corredor adjacente às galerias ecoam músicas de trabalho, compiladas por Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça, parte da instalação O Povo Reunido, Jamais Será – Representações Gráficas (2009-10) —cujo o título parece ironicamente inverter o conhecido mote da revolução de 25 de Abril de 1974— composta por uma pilha de cadeiras arrumadas, destituídas de utilidade, e por um conjunto de pinturas inspiradas em cartazes de propaganda política dos quais foi eliminada a componente escrita. Ordem de Assalto (2011-20), uma instalação composta por produtos alimentares que remetem ao imaginário português, suspensos por redes de pesca e fio norte, leva-nos através do olfato e da visão ao interior de uma mercearia local. Concebida durante os tempos conturbados da Troika, esta obra remete ao racionamento alimentar que a pobreza impõe, em períodos de crise. Na última sala, encontram-se Família (2004) e Ser pós-moderno em Portugal (2005) – obras de índole mais íntimo, mas não menos políticas, um diário ilustrado, composto por narrativas pessoais sobre parentes, amigos e o tempo na escola, reminiscentes de questões abordadas ao longo da exposição.
O fenómeno coletivista é uma constante na investigação de Carla Filipe, desde as greves operárias à passagem pelos artist-run spaces. Tendo estudado na FBAUP, a artista foi protagonista da artist-led scene portuense, enquanto cofundadora do Salão Olímpico (2003-05), com Eduardo Matos, Renato Ferrão, Isabel Ribeiro e Rui Ribeiro e do Projecto Apêndice (2006-08) com Isabel Ribeiro. Na Biblioteca de Serralves encontramos livros, edições de artista e posters realizados no contexto dos espaços informais – plataformas privilegiadas de debate, encontro e intercâmbio, autênticas redes que se estendem para lá do espaço físico.
In my own language I am independente, de Carla Filipe está patente até dia 17 de setembro de 2023 no Museu de Arte Contemporânea de Serralves.
1 Krenak, Ailton (2020). A vida não é útil: Ideias para salvar a Humanidade. São Paulo: Companhia das letras.