Eurico Lino do Vale na Galeria Belard
Visito a Galeria Belard e apercebo-me da consistência sólida e da propriedade alva do seu interior. As fotografias expostas de Eurico Lino do Vale, na Exposição Volterra, estão na verdade bem “guardadas”, penso.
Vislumbro um primeiro grupo de imagens, depois de o meu olhar vaguear pelo espaço, e concluir que, a planta da galeria, se encontra dividida em quatro pequenas salas. Aguarda-nos preciosas surpresas.
Na primeira sala sou “tocada” por uma fotografia de uma senhora bastante idosa, aninhada sobre uma poltrona escura. Um pé mais à frente, protege o outro, que se esconde atrás do primeiro, formando um x. O corpo, esse, permanece indefeso, pesado, apesar da sua frágil compleição. Sobre ele repousam anos a fio de histórias de vida, que o olhar não esconde. Um olhar que fita, e simultaneamente nos aguarda.
Tudo na fotografia se harmoniza, o padrão do vestido, de flores grandes, os sapatos cuidados. As formas doces impressas no conforto da almofada. As mãos, essas, pousadas sobre o colo, de modo contido, aninham-se uma à outra, e repetem o traçado das pernas. Tudo sobre um fundo rugoso de pedra irregular que deixa antever uma paisagem de casas rústicas e rurais, presentes na província italiana da Toscânia.
Não é fabricado, o fotógrafo deixa o acaso entrar, é bem vindo o ondulado do vento, ou o tecido que teima em ficar desordenado sobre o corpo.
Ao lado da velha senhora, um outro retrato impõe-se. Um homem bastante mais jovem, sentado sobre uns degraus, e encostado a um muro, igualmente pedregoso, segura um cigarro com as mãos. Com o corpo a três quartos, olha de lado para a câmara e morde os lábios com força, numa tentativa de se manter imóvel. Existe cumplicidade, talvez uma conversa, ou uma empatia se tenha estabelecido entre o jovem e o fotógrafo, antes mesmo de este último disparar o obturador.
Descobrimos as pessoas reais que Eurico Lino do Vale foi encontrando ao longo do seu percurso errante. Também nós quase evocamos esse lugar do viajante, ao mover-nos na galeria. Vamos descobrindo cada rosto, cada pose, cada indivíduo, marcado pelo tempo, marcado pela sua história de vida, que é única e intransmissível.
Ainda na primeira sala, um homem surge retratado de pé. Apoiado na sua bengala, encontra também equilíbrio na parede crua. Aguarda confiante, e de modo sereno, a impressão que Eurico vai deixar na película fotográfica.
As vestes, mais difíceis de controlar, caem soltas e sem aprumo. Vão conferindo uma leveza à composição fotográfica e um efeito de movimento aos protagonistas. Aproximando-os da vida e da veracidade do ser.
Temos homens de tronco nu, outros em camisolas de alças, asseverando uma certa virilidade, e ainda uma vida por viver. Desnudam-se algumas almas, outras somente aquilo que desejam mostrar.
As imagens em Volterra convocam-nos a elaborar histórias. Os ingredientes encontram-se lá todos. Nos mesmos cenários, pedrosos e grânulos, outras senhoras, de longa idade, envergam vestes padronizadas: mãos que seguram aventais amarrotados, olhares fundos, escondidos sob as sombras dos seus rostos marcados.
Homens de calças largas e ondeantes contrastam em fundos com listras horizontais. Rostos cansados mas ainda benevolentes.
Casais que aceitam ser fotografados na sua cumplicidade, ele de camisa enlaçada à cintura, e tecido florido a arrebanhar o ventre, ela de avental, e pernas curtas unidas, a continuar as linhas verticais que a bata então evidencia.
Um sem-número de pessoas vai desfilando nas fotografias, e despertando a nossa curiosidade, de como viviam, o que faziam, o que sentiam e pensavam.
Nesta exposição são tratadas com o apreço e a devoção que merecem. Ao fim e ao cabo são vidas (valiosas) que o fotógrafo ajudou a encapsular no tempo. Devemos venerá-las. Temos a obrigação de as reverenciar. Cuidado, são imagens que levam vidas dentro, vidas que confiaram em nós.
A exposição de Eurico Lino do Vale, Volterra, com curadoria de João Silvério, recupera a conceito de fotografia de viagem. O artista, como diz o curador, “persegue uma metodologia, por vezes não programada e assim aleatória, de proceder ao registo de diversas personagens que encontra até ao limite das possibilidades materiais e temporais de que dispõe naquele momento”.
Eurico Lino do Vale, quando estudava em Dusseldorf, na Alemanha, no final da década de 1990, e durante uma pausa letiva, visitou a Toscânia em Itália, e vagueou pelas ruelas e lugares esconsos rurais, afastando-se do grupo de amigos que o acompanhava. Essa escapadela fê-lo encetar um percurso verdadeiramente solitário de captação de imagem, que confirma o trabalho que já realizava na altura, no uso retrato de pessoas e de comunidades nas suas fotografias, como as desenvolvidas nos projetos realizados entre 1999 e 2009, “Retratos de Alfama”, “Retratos e outras situações encenadas”, e “Retrato(s) da Aldeia da Luz”. Onde se evidencia uma certa alusão à neue sachlichkeit, ou à Nova Objetividade, em que os artistas, sobretudo alemães, revelavam um compromisso com o mundo, e a sua praticabilidade. São trabalhadores locais que Eurico Lino do Vale representa na exposição.
Por outro lado, estas figuras revelam-nos a instantaneidade do fotógrafo. “A fotografia proporciona história instantânea, sociologia instantânea e participação instantânea”, dizia-nos Susan Sontag.
Por último, e após observarmos uma fotografia de uma árvore, que nos interpela para um olhar de proximidade e de reconhecimento do que nos une, a natureza, somos acometidos por uma sebenta que se encontra exposta no final da exposição. Folheamos o pequeno livro e encontramos miniaturas das imagens dos trabalhadores que observámos ao longo da exposição. Descobrimos possíveis sequências e associações de imagens diferentes daquelas que foram expostas sobre as paredes, e vislumbramos a infinidade de ligações que podem existir entre elas. As mesmas imagens acentuam a ideia de Walter Benjamin de que “a obra de arte sempre foi reprodutível”.
As páginas são adornadas pelas pequenas fotografias em formato quadrado. Ao lado delas é deixado um grande espaço vazio onde poderia escrever-se um texto. Talvez Eurico Lino do Vale tenha deixado as suas páginas vazias para nós as cobrirmos com as histórias que criámos durante o momento em que admirámos a série exposta na galeria. Ficando como que um livro aberto para podermos fazer as nossas próprias conexões.
A exposição Volterra de Eurico Lino do Vale está patente na Galeria Belard até 16 de setembro.