Colecção Primavera-Verão de Ana Santos na Culturgest
Acedo à exposição Colecção Primavera-Verão de Ana Santos, patente na Culturgest em Lisboa.
A princípio sou arrebatada por cores singelas, metalizadas, que cobrem estruturas tubulares, e se erguem altas no espaço, a pontuar a galeria. A envergadura esguia das estruturas fazem-me tomar consciência da configuração do espaço. Teto, paredes, e pormenores técnicos de arquitetura também aparecem a ressoar e a convocar a minha atenção.
As pinturas lacadas, que preenchem as superfícies em PVC de alta densidade, despertam-me, por instantes, para os contrastes de cor, para o brilho causado pela luz refletida sobre essas mesmas tintas, e para as abraçadeiras metálicas que unem as diferentes partes constituintes das peças[1].
Recordo-me dos artistas que, no final do século XX, cobriram de prata as suas obras escultóricas e também dos que recorreram à miscigenação das várias disciplinas artísticas. Lembro-me da pintura, da escultura, e da importância da aplicação da cor, na superfície das obras tridimensionais, nos domínios clássicos da arte. No passado (a cor) era vista como um atributo subsidiário da obra, decorativo ou representativo, e não valorado, como mais tarde foi, de elemento autónomo exclusivo da essencialidade da pintura – nos termos referidos pelos puristas e por Clement Greenberg.
Mas foi sobretudo sobre as abraçadeiras cromadas, além da impressão agradável e contrastante da cor, que o meu olhar se deteve intrigado, e que me causou um certo fascínio, que não mais me abandonou.
Tentei lembrar-me que razões me levariam a dedicar tanto do meu tempo a cogitar sobre os motivos do encanto que me causaram tais brilhos, mas demorei a achar uma resposta. Pelo menos uma resposta plausível para mim.
Johannes Itten, nas suas teorias sobre a cor, elucidava que, para o artista, os efeitos causados pela cor, residiam sobretudo no observador, e que os próprios segredos da cor permaneciam ocultos, e muitas vezes invisíveis, aos nossos olhos. Eram, precisamente, esses segredos que me traziam a um estado de perplexidade face aos pequenos brilhos que constatei nos pormenores técnicos visíveis nas esculturas, e que no entanto prendiam tanto a minha atenção.
Essa culpa, por um encantamento entranhado que não conseguia compreender, viu-se dissipada, precisamente no momento em que decidi rever Itten e me apercebi das suas palavras libertadoras e esclarecedoras, com respeito ao domínio da cor, e à escolha que os artistas faziam dela. Ora ela pode, para Itten, precisamente ser uma escolha intuitiva do artista, ou, por outras palavras, revestir-se de um trabalho intenso de depuração assente na investigação, e num conhecimento aprofundado e científico das suas propriedades.
Cor é vida, terá dito ainda Itten. “Assim como a chama gera luz, a luz gera cores. As cores são filhas da luz e a luz é a mãe. A luz, esse primeiro fenómeno do mundo, revela-nos o espírito e a alma viva desse mundo através das cores”.
E assim prossigo, e me detenho, inebriada pela cor e brilho das obras de Ana Santos. Continuo a indagar, na tentativa de perceber as ressonâncias que me provocam as suas fantasmagorias, e ainda as suas hipotéticas analogias.
Vagueio o olhar na história de arte, e sobretudo perscruto na memória, as obras do passado onde poderei ter sentido, justamente, o mesmo arrebatamento que experimentei ao admirar a fulgência causada pelos elementos técnicos nas peças de Ana Santos. Ocorre-me, claro, o tratamento retilíneo e industrialmente bem acabado das obras minimalistas e essencialistas do século passado. Mas também, e mais remotamente, o efeito inebriante de obras mais antigas, e no que se poderia tomar então como uma verdadeira lição de pintura. E foi justamente na pintura que fui encontrar essas ressonâncias, essas reverberações, esse consolo. – Recordo as pinceladas largas de Tintoretto, realçando pormenores de luz e misticismo, – relembro os raios de luz fortes desferidos por Caravaggio sobre os rostos iluminados das personagens envoltas na escuridão, – friso o gosto do artista pelo pormenor, em Cesta de Frutas,1598, na obra Cabeça de Medusa, 1597, ou ainda em Baco Doente, sobretudo o cuidado, nesta ultima obra, pela aplicação dos brilhos sobre a superfície dos pequenos bagos de uva pintados. Oferecendo-se a mim como uma dádiva, podia alongar-me em Diego Velázquez e na impressão fulgente que o artista moldava, quando pincelava a luz sobre o cabelo, o rosto e o vestido das várias infantas Margaridas, que tanto representou em tela. Figuras hirtas e tensas, cujo olhar se inclina sobre nós, mas sempre num ar vago e abstrato, porém inquietante. Esse olhar que não deixa o observador de fora, mas que o impele a ser perpassado pela obra.
Poderia estender-me a mais exemplos; A luz que se perscrute, em mais obras de Velázquez, como a Vénus ao Espelho (1948), que se distingue na modelação de brilhos presentes nas asas radiantes do anjo que ampara o espelho onde a vénus se mira comodamente; ou o retrato do Papa Inocente X (1630), mais tarde interpretado por Francis Bacon, este último rodeando a figura papal com trajetos de tinta reluzente, e de luz serpenteante.
A exposição de Ana Santos, parece ser sugerido pelo título Colecção Primavera – Verão, precisamente um desfile de figurinos. Há abraçadeiras, que mais poderiam evocar gargantilhas ou colares de pedras e metais preciosos. Somos impelidos a olhar para cima. Estas figuras altivas, sugerem-nos outros patamares, talvez lugares onde habitem espíritos mais elevados. E as poses antropomórficas, e aristocráticas, ligam-se, quem sabe, a ostensões e narcisismos de outros tempos. Lá onde havia lugar para as certezas, se aspirava à perfeição dos seres, e o homem era o centro das coisas.
É precisamente na “maturação da minha visão”[2], e “por meio das coisas”[3], como uma “operação do pensamento”[4], que vou buscar, através do que me é dado ver, a “minha interioridade”[5], as minhas alusões a outros tempos em que fui arrebatada, por outras obras outras, ou justamente pela pintura de outrora, pelas mesmas sensações de brilho, e perplexidade.
Somos, simultaneamente, “videntes e visíveis,” diz-nos Merleau-Ponty. “Visível e móvel, o meu corpo pertence ao número das coisas, é uma delas, está preso na textura do mundo, e a sua coesão é a de uma coisa”[6].
Observo as esculturas de Ana Santos, e apercebo-me do estado imersivo em que me encontro. Participo delas, na medida em que o meu corpo, de pé, se encontra integrado no mesmo espaço em que habitam, e enfatizo a sua verticalidade. Realizo, tal como elas, que sou mais um corpo, refletido nas suas superfícies, e que, ao mesmo tempo que as olho, e me olho, descubro-me fitando ao espelho, simultaneamente.
A exposição Colecção Primavera-Verão de Ana Santos, apraz-nos com as suas formas cobertas de cores, ora frias ora quentes, por vezes delicadas, outras vezes mais intensas. Peças assomam cobertas com vestes formadas por fios que caem inteiriços, como retas paralelas até ao chão. O desenho intui-se, mesmo que de modo oculto e um tanto ou quanto arredio. As obras da artista refletem um cuidado extremo nos acabamentos das superfícies, numa intenção de qualidade estética[7], que se afasta, e quase se opõe, aos modelos aplicados anteriormente pela artista, e manifestos em exposições do passado, evocadoras de uma certa “desestatização”[8], ideia elaborada, a uma dada altura, por Harold Rosenberg[9]. A obra presente, na atual exposição, que mais se aproxima dessa conceção, e que liga a artista a esse modo de fazer do passado, é a obra Sem título, de 2015. Constituída por objetos encontrados, é compreendida por caixas metálicas, já amassadas, sem o tratamento delicado das outras peças presentes na exposição. Esta obra, Sem título é a última na trajetória da exposição, e apenas é amenizada da sua forma desordenada, por meio de um manto que a cobre, feito de fios que tombam, de modo vertical, em direcção ao solo.
Colecção Primavera-Verão de Ana Santos está patente na Culturgest até 10 de setembro.
[1] . Peças que reflectem a iluminação da galeria, os seus elementos, e as próprias sombras.
[2] Merleau-Ponty (2018) O olho e o espírito. Nova Veja, 10ª edição, pág. 20 a 23.
[3] Ibidem
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6] Ibidem
[7] Ao cobrir com lacados os tubos em PVC, atribui-lhes qualidades estéticas.
[8] O termo “Desestatização”, e o autor Harold Rosenberg, foram mencionados por Bruno Marchand, no catálogo da exposição Corpos Imanentes, patente no espaço de divulgação de arte contemporânea Chiado 8 – Arte Contemporânea, entre 20.01 e 30.03.2012.
[9] Idem