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Em Bruto: as relações comoventes de Fernanda Fragateiro no CCB

Desde 2020 que Fernanda Fragateiro tem vindo a desenvolver o projeto Em Bruto: Relações Comoventes, onde o atelier da artista e o espaço expositivo criam uma ligação única entre si. O processo criativo e o seu resultado unem-se no espaço museológico, num trabalho onde acontece um diferente diálogo com a arquitetura do espaço, a cada nova apresentação. Desta vez, as novas relações acontecem no CCB.

É nas traves, nos cavalete e barrotes que Fernanda Fragateiro encontra a plasticidade para refletir sobre a arquitetura. Mas antes de chegarmos a este resultado, presente nas últimas duas salas da exposição, a artista mostra-nos o seu processo.

Na primeira sala, em caixas que também parecem mesas, Fernanda Fragateiro reúne um conjunto de livros, artigos, revistas, mapas cromáticos, fotografias e materiais anteriormente utilizados noutras obras. Esta reunião de material começou em 2015 e desde então encontra-se em aberto e constante metamorfose. Espalhadas pela sala em forma de constelação, as caixas funcionam como um arquivo ilustrativo do processo criativo da artista, iluminando-nos sobre as suas preocupações estéticas, filosóficas, políticas e poéticas. Vemos por exemplo o livro Angela: Portrait of a Revolution, sobre Angela Davis, escritora e ativista, ou Domicile: The Global Destruction of Home, de Douglas Porteous e Sandra E. Smith, que reúne um conjunto de casos de estudo e histórias que abordam a destruição da casa enquanto lar. Algumas das caixas encontram-se fechadas, outras ligeiramente abertas, revelando segmentos dos objetos que guardam. A este conjunto de peças, a artista dá o nome de Materials Lab.

Nas palavras de Alfredo Puente, curador da exposição: “Na primeira vez que vi as caixas abertas de Materials Lab — um arquipélago de imagens e estruturas expostas sob a luz por Fernanda Fragateiro como poética do seu campo de investigação —, tive uma intensa «sensação de paisagem»”[1].

A sala seguinte funciona como uma pequena biblioteca, onde o espetador é convidado a debruçar-se nos livros expostos numa longa mesa, que anteriormente já tinham sido referenciados na instalação Materials Lab. Do que tínhamos visto, agora podemos tocar, folhear e ler. São sobretudo textos teóricos sobre arquitetura, reflexões sobre o espaço e o feminino, a cidade e a modernidade, mas também catálogos de anteriores exposições de Fragateiro. Neste mesmo lugar, ouve-se a voz de Nina Simone, que toca num pequeno rádio.

Na teia de referências pela qual acabamos de mergulhar, compreendemos que para a artista há uma aliança direta entre a arquitetura e as questões sociais e políticas.

Confrontados com os processos, referências e motivações de Fernanda Fragateiro, passamos para os seus resultados, presentes nas última duas salas de exposições. Aqui encontramos Estaleiro (2022), uma grande instalação composta por vinte e duas esculturas, constituídas por vigas, cavaletes, escadas, suportes de macaco, ferro lacado, e estruturas em pinho nórdico. As várias peças escultóricas adquirem diferentes composições, com variações no número de vigas de madeira que utilizam. Umas são de configuração horizontal e outras mais verticais. O poético encontra-se nas palavras que fazem parte de cada uma das esculturas, onde no texto sobre madeira, se lê o título de cada um dos livros pelos quais já tínhamos mergulhado. As referências teóricas que Fernanda Fragateiro nos foi dando a conhecer ao longo do percurso expositivo, materializam-se agora em esculturas. Entre elas lemos nomes como o das arquitetas Lina Bo Bardi e Eillen Gray ou do arquiteto Le Corbusier, referências importantes no percurso da artista.

Os estaleiros são lugares construídos à beira-mar ou rio que servem para a construção ou reparo de navios, possuindo estruturas fortes capazes de sustentar grandes pesos. Por outro lado, a origem etimológica da palavra, dá-nos outra perspetiva sobre o seu significado. Estaleiro provém do francês antigo astelier,[2] que significava pilha de madeira. Hoje, o francês atelier, indica oficina, tal como em português.

Ao longos das salas assistimos aos processos que sustentam o corpo de trabalho de Fernanda Fragateiro. Os materiais em bruto, os estudos, e os livros que normalmente não saem do atelier, ocupam agora o espaço museológico. O atelier que vimos nas primeiras duas salas, transforma-se em estaleiro nas duas últimas, e a materialidade da última dá continuidade à primeira. Nos estaleiros constrói-se e repara-se, tal como no atelier. E ambos estão intimamente ligados pela sua origem etimológica.

Em Bruto: Relações Comoventes está patente no CCB até 10 de setembro de 2023.

 

[1] Citação de Alfredo Puente retirada da folha de sala da exposição Em Bruto: Relações Comoventes

[2] ciberduvidas.iscte-iul.pt. (n.d.). A origem do substantivo estaleiro – Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. [online] Disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-origem-do-substantivo-estaleiro/32939

Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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