E Mare Libertas: Haven, na Galeria da Boavista
Como construir o seu próprio país: cinco possibilidades para começares hoje. Esta poderia ser uma chamada irónica, uma espécie de jogo de palavras que desdenha dos prolíficos manuais contemporâneos do tipo “como começar um negócio quando ainda és estudante”, “os cinco passos para o sucesso” ou, até, “como ser um milionário budista”. Todos esses títulos são verdadeiros; caso o leitor se interesse, os guias existem, de facto. Foi Erwin S. Strauss que, em 1979, escreveu o primeiro, um livro libertário “dedicado a todos os organizadores de novos países do mundo – passados, presentes e futuros” [1]. Esperançoso de que a década de 1980 seria uma Era Dourada para o rebentar de novas nações, o autor – fã, como esta que vos escreve, das ficções científicas – questiona a rigidez conceitual que nos convence que o aqui-e-agora é o único mundo real e possível, adepto – não como esta que vos escreve – da ideia de que o impulso separatista é um elemento próprio do humano na sua dinâmica social e (supostamente) essencialmente conflituosa.
A proposta é controversa e exige reflexões maiores do que este breve artigo poderá oferecer. A investigação sobre micronações do artista tasmaniano, residente em Lisboa, James Newitt, por exemplo, demora-se já por 10 anos. Trata-se de um interesse que, como outros projetos do criador multimédia e multipremiado, se aprofunda e se expande num longo período de envolvimento intelectual, no qual têm espaço todas as complexidades e os paradoxos de um determinado arranjo sócio-cultural-ambiental. Em Haven, na Galeria da Boavista – uma espécie de segunda iteração da obra instalativa que apresentou, em 2021, na Bienal de Fotografia do Porto –, expõe parte da sua pesquisa acerca do Principado de Sealand, entidade que reclama para si, e não para o Vaticano, o título de “menor Estado do mundo”. A sudeste da Inglaterra, banhado pelo Mar do Norte, o território do país resume-se a uma grande base naval britânica construída durante a Segunda Guerra Mundial e ocupada por Roy Bates, operador de uma estação de rádio “pirata” e fundador de Sealand. Daí segue-se uma epopeia muito bem narrada no site oficial do governo, que ostenta os seus clubes desportivos igualitários, o compromisso com a sustentabilidade e a horizontalidade, e o empreendimento fracassado de se tornar um “paraíso de dados” “sem as restrições draconianas de censura impostas por outras nações” [2].
Por coincidência ou destino, inicio a escrita deste texto a caminho de Gotland, a maior ilha da Suécia, rodeada pelo Báltico – oceano vizinho ao de Sealand. São cerca de três horas de viagem desde Estocolmo: três horas no balanço do mar, três horas a sofrer de enjoos, três horas com a vista infinita e mística de um horizonte azul e ondulado. Pisco os olhos e consigo, estranhamente, ver as águas feitas de pixels que James Newitt fixa em Untitled (fire) (2022), Untitled (tower) (2023) ou na instalação audiovisual HAVEN (2023). De repente, não estou mais cercada de uma imensidão orgânica e líquida, mas, sim, de um cosmos virtual, uma espécie de realidade cibernética cuja nitidez depende da velocidade da Internet, suscetível a glitches e bufferings. Não posso deixar de pensar que a tentativa visionária de fazer do fundo do mar um refúgio não-regulado de informações – assim como terreno para novas utopias aquáticas ou comunidades start-up flutuantes, parafraseando o curador Mattia Tosti na folha de sala da mostra [3] – depende desta transmutação especulativa e material (talvez demasiado simplista, ou puramente legalista) dos oceanos em “terra de ninguém”. Olho pela janela e confronto-me com o absurdo possível desta ideia: daqui, vejo, de facto, um grande vazio quase-estável; navego, contudo, acima de pelo menos 50 metros de incontáveis vidas, ecossistemas marinhos, memórias em trânsito e plástico. O quanto não temos de anular ou ignorar, vaidosamente, para tornar este mar impenetrável e desconhecido um objeto conquistável?
Sem omitir as conotações colonialistas desta iniciativa, Newitt traz, com atenção e cuidado, todas essas questões a bordo da galeria, cuja arquitetura modifica-se para refletir os servidores e corredores de um data centre. Mesmo no trato à intimidade da família real de Sealand – e, depois, à imagem da torre –, o artista preserva uma certa distância, privacidade e mistério, optando por intervir graficamente sobre as fotografias de arquivo e, até, reconstruir os espaços de forma inteiramente digital. Em certa medida, as suas escolhas estéticas (mas, sobretudo, éticas) traduzem, também, um processo de pesquisa solitário, que tentou encontros nunca concretizados e correspondências nunca respondidas (HAVEN (archive), 2023): como desenhar um retrato daquilo que nunca vimos? É aqui que acontece o salto brilhante da proposta artística de Newitt: ao desequilibrar o rigor das suas próprias representações de Sealand, faz-nos também questionar a realidade, ou a concretude, deste projeto-país. Estudos envidraçados, investidas de contacto vãs e a imaginação de um lugar ficcional para ocupar e inventar: assim podemos descrever Sealand, um território insular e isolado, repleto de sonhos que se enferrujam e narrativas que se afogam. Pelo tema e pelo método que elege, Haven recorda-nos que, hoje e sempre, utopias não serão, por si mesmas, suficientes: fantasiar novos topos para o mundo só fará sentido se feito coletiva e criticamente.
Haven está patente na Galeria da Boavista, em Lisboa, até 17 de setembro de 2023.
[1] Strauss, Erwin S. (1979). How to Start Your Own Country. Colorado: Paladin Press.
[2] Disponível em <https://sealandgov.org/en-eu/pages/the-story>. Tradução livre.
[3] Disponível em <https://galeriasmunicipais.pt/wp-content/uploads/2023/06/GM_Boavista_Haven_print_pt-1.pdf>.