Dors petit dors: Sara Sadik na Kunsthalle Lissabon
Même si d’au fond ça s’dispute mama et papa ils s’aiment
(Mesmo que no fundo discutam, a mamã e o papá amam-se)
– JuL em “Dors petit dors”
Inicia como uma canção de embalar, a música Dors petit dors do rapper francês JuL. Muito ouvida por jovens franceses, a canção narra a experiência de uma criança que vive nos subúrbios e cresceu num núcleo familiar instável. E é a partir dela que Sara Sadik nomeia a sua primeira exposição individual em Portugal, na Kunsthalle Lissabon, onde o mundo dos sonhos se torna numa experiência multimédia imersiva.
A prática artística de Sara Sadik desenvolve-se em torno da performance e de instalações multimédia. Para descrever a sua obra, a jovem artista francesa criou o termo Beurcore[1], que se refere à cultura dos jovens franceses da diáspora africana, especificamente da zona do Magrebe (no norte de África), que inclui países como Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia. A artista traz para a arte contemporânea alusões à cultura urbana, ao clube de futebol Marseille, ao rap francês, aos video-jogos, anime ou manga. São referências importantes e determinantes na vida de muitos jovens que vivem em bairros na periferia de cidades francesas, e que frequentemente são vítimas de racismo e intolerância religiosa. A roupa, o estilo musical, a linguagem e os símbolos, são referências que conectam várias pessoas em simultâneo. E, Beurcore é tudo aquilo que as une, que é criado, mas também consumido por elas.
Descendo as escadas até à sala de exposições da Kunsthalle Lissabon, a brilhante luz amarela começa progressivamente a invadir o nosso campo de visão, até nos encontrarmos com as cortinas de plástico transparente, também desta cor, que nos separam da atmosfera seguinte. Passando por elas, somos inundados pela intensa luz azul do espaço expositivo, e é aqui que o sonho começa.
Por toda a sala, desdobra-se um insuflável branco de contornos sinuosos, no qual nos podemos sentar. No teto, quatro televisões inclinam-se para nós, mostrando um vídeo multicanal onde vemos uma figura andrógina, com um braço cibernético, que caminha numa paisagem desértica. Não sabemos para onde vai, ou quais os seus objetivos. Também não sabemos quem joga, mas descobrimos a sua idade (19 anos) quando inicia login nesta aventura virtual. E aos poucos, vamos descobrindo fragmentos do seu mundo, das suas memórias.
O caminho por este deserto virtual é feito de encontros. Ao longo do seu trajeto a personagem vai encontrando objetos que lhe remetem para memórias de infância e adolescência. Pelo caminho encontra-se com um carro de brincar, um ursinho de peluche, uma consola, uma pistola de água e um saco de campismo. Em cada encontro, surge uma mensagem com a descrição das memórias e sensações a que cada objeto está associado. No caso do ursinho de peluche, está ligado à primeira vez que esteve no hospital, tendo sido a prenda que o seu pai lhe ofereceu nesta ocasião. Por serem memórias tão especificas, fazem-nos questionar se pertencem à personagem ou ao jovem que a joga. E assim é diluído a barreira entre o real e o virtual.
O imaginário do deserto é recorrente na obra de Sara Sadik. Numa conversa com Hans Ulrich Obrist, a artista abordou a noção de “deserto afetivo” [2], que explica a falta de espaço que jovens homens sentem para expressar emoções como a tristeza ou o amor. Ao explorar esta temática, a artista abre caminho para o diálogo sobre o patriarcado, assegurando os jovens que a manifestação de vulnerabilidade é também um sinal de força.
Entrar num deserto tanto pode ser uma experiência de perda ou de encontro. Em Dors petit dors, é de encontro. Um encontro com memórias afetivas e sensações que estavam submersas nas suas dunas. O deserto é também uma imagem que está relacionada à zona do Magrebe (marcada pelo grande deserto do Saara), e Sadik utiliza-o como um lugar que não só carrega a origem geográfica dos jovens tratados na sua obra, como também a origem das suas memórias afetivas.
Dors petit dors é uma experiência imersiva que olha para os sonhos como uma possibilidade de encontro com o nosso interior, utilizando e expandido o deserto enquanto símbolo. Por outro lado, o refúgio que se procura nos vídeo-jogos, é aqui lugar de reunião com importantes memórias de infância, tornando uma experiência que normalmente leva à desconexão com o mundo real, num encontro com o mais profundo que existe dentro de nós.
A exposição de Sara Sadik está patente na Kunsthalle Lissabon até 2 de setembro de 2023.
[1] Félix Boggio Éwanjé-Épée et Stella Magliani-Belkacem, « Une jeune scène française. Sara Sadik » — Numéro Art (2022). Pág. 179. Disponível em: https://galeriecrevecoeur.com/content/1-artists/sara-sadik/2-texts/ss_2022_numero_new.pdf
[2] In Conversation with Sara Sadik (2020). Disponível em: https://www.luma.org/en/live/watch/Conversation-avec-Sara-Sadik-5e6895a0-f502-4286-ac69-249ee27d398e.html