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¿A Terra ainda é redonda?: Cristina Ataíde e o seu modo de fazer mundo

Somos inicialmente confrontados por esta questão: ¿A Terra ainda é redonda?. Entramos e seguimos viagem, de olhar atento e curioso. Na esperança de a ver respondida ao longo desta que é a primeira exposição individual de Cristina Ataíde no Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC) – Museu do Chiado.

Com curadoria de David Barro, esta proposta expositiva coloca em evidência o corpo de trabalho da artista e, quer através de obras produzidas especificamente para esta exposição, quer através de outras readaptadas ao espaço, imerge-nos no mundo de Cristina Ataíde, ainda que não se trate de uma exposição retrospetiva.

Enquanto perdia o olhar – e me perdia – no trabalho apresentado na Sala dos Fornos do MNAC, vinha-me à memória o pensamento de Philippe Descola, que esteve recentemente em Lisboa. Descola ensaia, através de uma antropologia da paisagem[1], sobre novos modos de perceção do mundo, onde tudo pode e deve ser colocado em questão, onde tudo é proposto a ser repensado. Provoca-nos a ir mais além. Assume a natureza como um contínuo: uma extensão social que nos integra ao invés de nos separar. Estende e amplia o campo das relações humanas a uma nova composição do mundo, em íntima relação com a natureza como parte do mesmo sistema – a fusão entre o humano e não-humano. Reflete sobre a ecologia – tal como Ataíde o faz profundamente no seu trabalho – e alerta-nos para novas formas de fazer mundo, de compor mundos, com base nos modos de perceber, atualizar, detetar e analisar as qualidades do meio ambiente, e das relações que este nos permite criar.

Não posso deixar de pensar que são, no fundo, estas dimensões relacionais entre humano e não-humano, entre cultura e ambiente, a base e espelho do trabalho artístico de Cristina Ataíde e daquilo que nos propõe com esta exposição – questionando a Terra que habitamos e as relações que com ela estabelecemos.

A natureza é o ponto central da sua obra. Trabalha na e com ela, integra-se e integra-a no seu processo criativo. Assume-a como criadora. Isso é evidente em Com o Vento #1 (2022), onde a ação natural se assume como processo e dita o resultado, bem como em La couleur du jour (2013/2023) ou até mesmo na série Esculturas do mar (2023). É pela exploração da natureza-paisagem, e dos seus quatro elementos, que revela as suas preocupações com a ecologia, ancorando-se nas suas muitas viagens e caminhos percorridos e atribuindo ao lugar-território um papel fundamental na sua prática artística – veja-se a geografia emocional que Cristina apresenta mapeada numa das paredes da exposição, através da série Pedras do Mundo (2023), numa profunda cartografia poética da memória dos lugares por onde passou.

O seu trabalho dá primazia às formas e ao conteúdo e é na natureza que encontra resposta, recolhendo elementos naturais das suas viagens, numa prática de olhar atento ao detalhe que se transpõe para as suas obras e exposições e que tem o corpo como elo de ligação – de fusão. Nesse cruzamento, tempo e espaço ganham dimensão e significado, inventam possibilidades e propõem uma certa evasão da materialidade dos elementos recolhidos, conjugados agora num tempo e espaço únicos que nos lembram os permanentes processos de alteração e transformação, bem como os seus ritmos, ciclos e até ausências. Essa conjugação é evidente na tensão que envolve Pinus pinaster (2023) – um tronco suspenso que enfrenta os antigos fornos e nos permite questionar a nossa relação com o mundo – e na presença do círculo como forma e símbolo que pontua diversos momentos da exposição.

O que será que está por baixo de tudo isto – Under all of This?. Assim, em ¿A Terra ainda é redonda?, Cristina Ataíde leva-nos a participar numa viagem performática e espiritual ao interior da Terra e recorda-me o testemunho que deu a Cláudia Almeida, em Filhos da Nação[2], acerca da sua experiência num vulcão da Etiópia. A crosta e o preto da lava são anunciados por Polaridades solúveis #1 (2016). Através de um olhar atento a obra revela o mesmo vermelho intenso – imagem de marca do trabalho de Ataíde – que reflete a partir do núcleo central da sala. A greta nessa crosta, que Cristina descreve, é assumida por Pedra parideira (1998). Esta permite vislumbrar o interior de uma Terra assumidamente feminina e reprodutora – criadora de mundos. Somos forçosamente atraídos a fazer parte, a entrar num interior de um vermelho infinito onde tudo cabe – será esse interior um novo mundo? A viagem culmina nesse interior vivo (Sem título 2023A, 2023), em constante transformação. Que nos centrifuga, envolve, abraça e convida a uma contemplação que vai além da experiência estética. Um interior que nos permite sonhar – será esse interior um céu? –, que extravasa os seus limites.

Nesta exposição nada nos é, por isso, estranho à linguagem artística que Cristina Ataíde nos tem vindo a habituar ao longo destes seus mais de 30 anos de trabalho em diferentes media. Contudo não deixa de sempre nos surpreender, por meio da sua constante interrogação, numa perspetiva de desenvolvimento contínuo que cria novo, ressignifica e se permite a novas leituras. Através de uma poética da memória que possibilita sempre compor novos mundos. Mundos que tornam visível o invisível. Dão-lhe corpo, matéria, espaço, presença e uma nova consciência.

E, tal como Descola, Cristina Ataíde vai mais além. Provoca-nos, coloca a nossa existência em causa. Num contínuo devir[3] que nos esvazia de certezas para que possamos imaginar e permitir-nos a (compor) novos mundos: ¿A Terra ainda é redonda? Independentemente da sua forma, Cristina Ataíde imagina e compõe esta Terra como parte de um sistema comum, em constante transformação, e no feminino.

¿A Terra ainda é redonda? pode ser vista até 17 de setembro de 2023, na Sala dos Fornos do MNAC – Museu do Chiado.

 

 

[1] Descola, Philippe (2001). Anthropolgie de la nature: Leçon inaugurale prononcée le jeudi 29 mars 2001. Paris: Collège de France.

[2] Programa Filhos da Nação. Temporada 7: Episódio 4, de 8 de fevereiro de 2020 (RTP).

[3] Matos, Sara Antónia (2023). «Respiração Síncrona», in Cristina Ataíde. Respiração Boca a Boca. Santo Tirso: Museu Internacional de Escultura Contemporânea. pp. 21-31.

Mediador Cultural, Curador e Investigador. Mestre em História e Patrimónios e Licenciado em Património Cultural, pela Universidade do Algarve. É Bolseiro de Investigação no DINÂMIA'CET-ISCTE. Tem-se dedicado sobretudo ao trabalho de Mediação Cultural, de Educação Patrimonial e de Gestão de Projetos Culturais, com foco no cruzamento arte-cultura-educação. Tem participado em várias iniciativas nacionais e internacionais ligadas a projetos culturais na área das artes e inovação, como o ILUCIDARE, European Creative Rooftop Network, e Faro 2027. Foi um dos Jovens Embaixadores MACE 2022 e tem especial interesse pela criação contemporânea, estando a concluir a pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA FCSH. Acredita que 'há um futuro no passado'!

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