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Território #3: Profanações na Fidelidade Arte

A exposição coletiva Profanações faz parte do ciclo Territórios e é o terceiro momento desta programação que nasce de uma aliança entre Bruno Marchand, a Fidelidade Arte e a Culturgest.  Um novo território é explorado a cada nova exposição, sob a investigação e processo de um curador diferente.

Desta vez, com curadoria de David Revés, o território escolhido aborda a profanação, o sagrado, a liberdade e a expansão do real. A exposição tem como base teórica o livro “Profanações” de Giorgio Agamben, apropriando-se do seu título. A mostra conta com um conjunto de obras, documentos e objetos que caminham entre o esoterismo, a sexualidade, o ritual ou a identidade.

A inspiração em Georgio Agamben começa na folha de sala da exposição, com grafismos semelhantes aos de um manual de instruções de um jogo de tabuleiro tradicional. No capítulo “Elogio da Profanação”, do livro que dá título à exposição, Agamben reflete sobre os jogos como atos de profanação, pois na sua maioria derivam de rituais religiosos. Como exemplo, o autor refere que jogar à bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol, que os jogos de azar derivam de práticas oraculares, e que o xadrez fora utilizado como instrumento de adivinhação[1].

Entrar na exposição é como entrar numa cave secreta, abençoada pela escultura suspensa Ciclos (2022) de Christine Henry, feita de arame, madeira e ossos. O místico sente-se de imediato, seja pela pouca luminosidade do ambiente expositivo, ou pelo eco das pequenas gotas que se ouvem ao longe.

No centro da primeira sala, Sonja Alhäuser origina o primeiro momento contemplativo com a instalação Rotweinbrunnen (2017), uma fonte de vinho tinto embelezada com vários putti [2] esculpidos em chocolate branco e margarina. O vinho que escorre salpica o chão à sua volta, manchando também de vermelho-sangue as figuras que embelezam a fonte. Onde normalmente sairia água sob pressão de uma nascente escondida, é agora fonte de vinho. A fonte é um símbolo do sagrado, associado a mitologias que lhe conferem propriedades milagrosas de juventude eterna. Porém, aqui a água transformada em vinho, lembra o deus Dionísio, os prazeres da vida, e as desinibições imprevisíveis que o seu beber nos traz. Este sentido mundano é acentuado pelos acasos da natureza, que aqui se encarregou de levar até à fonte uma série de moscas atraídas pelo seu doce. A instalação consagra-se como uma vanitas viva que acontece diante dos nossos olhos.

Toda esta primeira sala é pontuada por oito pinturas circulares de Francisca Sousa, que remetem ao universo erótico BDSM, expondo de forma explícita a carne e o sangue das personagens que habitam a tela. Ainda aqui, Isabel Cordovil apresenta a poética fotografia Bloody Goliath (2023) e Mariana Gomes a pintura Sem título (2023), uma composição de formas sinuosas que se situa entre a abstração e a figuração.

O núcleo seguinte é construído por duas visões antagónicas acerca da nossa relação com a natureza. Por um lado, Annie Sprinkle & Beth Stephens apresentam sob uma perspetiva eco-feminista o projeto que desenvolveram ao longo de nove anos em nove países: Ecosexual Weddings. Com a finalidade de criar um relacionamento mútuo e mais sustentável com a natureza, Annie e Beth organizaram vinte e um casamentos, onde qualquer pessoa poderia participar da cerimónia, que tinham como objetivo a realização de votos com várias entidades da natureza. No vídeo que resume o projeto, assistimos a casamentos entre os participantes e entidades como a terra, o céu, a lua, a neve, ou o sol. Cada entidade é relacionada com cores e materiais específicos. Quem participa adapta-se à celebração com costumes, música e rituais próprios, onde há lugar para performances, dança ou recitação de poemas. Tratar a natureza relacionando-a à simbologia do casamento —uma cerimónia de raiz conservadora associada à religião — é certamente peculiar e transformador para com as noções sobre sexualidade e ecologia.

Por outro lado, António da Silva, aborda com Eremita (2020) a natureza sob uma perspetiva antropocêntrica, colocando-se como principal motor da fertilização e harmonia do meio natural. Neste vídeo, um personagem masculino caminha sobre a paisagem narrando e refletindo sobre a sua condição, enquanto interage com o solo e os seus elementos de forma sexualmente explícita. Se anteriormente Annie e Beth conceberam um local de igualdade com a natureza, António da Silva mostra como as relações de domínio entre humanos e natureza ainda estão bem assentes no mundo contemporâneo.

O discurso sobre a sexualidade e o prazer estende-se até à sala seguinte com dois desenhos de Ramus Myrup Homo Homo Eretus (in the Grass) e Homo Homo Erectus (Forest Fuck). Este núcleo é também pontuado com obras históricas que se relacionam com as contemporâneas, como é o caso de uma escultura em pedra, de autor desconhecido (séc. XV-XVI) e de uma xilogravura de Albrecht Dürer, A Grande Prostituta da Babilónia (1497-98).

A alquimia inunda a sala no vídeo-ensaio Viriditas (2019-2020) de Jol Thoms, uma reflexão sobre as práticas modernas de extração, exploração, dessacralização e domínio colonial. Utilizando ilustrações e documentos históricos sobre alquimia, o artista convoca um espaço-tempo não linear, intercalando imagens ancestrais com outras que evocam a tecnologia contemporânea. Simultaneamente, Jol Thoms investiga o grande conceito sob o qual o vídeo é trabalhado, viriditas, que significa vitalidade, fecundidade, exuberância, verdura e crescimento.

Ainda nesta sala, o coletivo Pedreira, caracterizado por uma prática artística transfeminista, híbrida e experimental, apresenta a instalação Banhas com Água al Dente (2023), constituída por três elementos. O primeiro, é uma panela de barro “banhada com aguardente, fogo, limão, maçã, açúcar e grãos de café, aquando escorunjo des manes ardentes” [3] assente numa coluna clássica. Os outros dois, distribuídos em dois pontos diferentes da sala, têm as mesmas sinuosidades da anterior, e são nomeados como “amuletos mineralóides embravecidos pelos binómios do cistema”[4]. A prática ritualística, a poesia e a ironia, tornam sagrada a expressão artística do coletivo.

O último núcleo da exposição é marcado pelo ocultismo e espiritualidade. Numa vitrine são expostos documentos ilustrativos destas práticas, como o Almanach da Bruxa D’Arruda: magica, espiritismo, sonambulismo, feiticeira e cartomancia) (1909) e a Revista de Espiritualismo: Publicação Mensal de Cultura Psiquica e Filosófica (1929). No centro da sala o coletivo Plastique Fantastique apropria-se destes conhecimentos montando uma mesa que simula uma leitura de Tarot Plastique Fantastique Science Fictioning Tarot: Your Future in Foolish Memes (2023), com a qual podemos interagir. Os gestos de liberdade continuam na pintura de Paulo Serra, na instalação de Pedro Moreira e no animismo invocado pela fotografia de Igor Jesus.

Odete encerra a exposição com as suas gargalhadas hipnotizantes, mas não só. Na instalação sonora Sorry/Sorrow (2023), Odete convida-nos a parar, sentar e ouvir a sua voz sussurrante enquanto narra as atrocidades históricas ocorridas a pessoas acusadas de sodomia, por terem relações homossexuais ou serem transgénero. O seu sussurrar é simultaneamente um grito, pois acentua a urgência para que a violência do passado não se perpetue no presente.

Como disse Agamben, o sagrado e o profano representam dois polos, e as práticas artísticas que encontramos na exposição circulam fluidamente ente um e outro. Transformar o sagrado em profano é passar para a esfera humana o que antes era divino, e é sobre este reinventar dos gestos que nasce o território criado por David Revés, que é certamente um Elogio à Profanação.

A exposição Profanações está patente na Fidelidade Arte até 1 de setembro de 2023, e na Culturgest Porto, de 30 de setembro a 14 de janeiro (com inauguração dia 29 às 22:00).

 

[1] Georgio Agamben (2007). Profanações. Boitempo: São Paulo. pág.59.

[2] Figuras infantis frequentemente representadas sem roupa em pinturas ou esculturas mitológicas e religiosas, especialmente no renascimento e barroco.

[3] Informação retirada da folha de sala da exposição Profanações.

[4] Idem.

Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.