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Experimento Coletivo: Confluência em Marvila

A exposição EXPERIMENTO COLETIVO: CONFLUÊNCIA convoca-nos a um retorno pleno à pintura, naquilo em que ela é de proto moderna, com a reposição aos recursos ilusionísticos da representação, ou do tratamento de volumes e sombras, e ao mesmo tempo moderna, dada a aplicação, de modo vertiginoso, da cor, em pinceladas largas, matéricas e grossas, em tudo aquilo que conduz aos conceitos de arte, enquanto história, mencionados por Clement Greenberg, e à ideia descrita por Arthur Danto de um contexto kantiano e purista da pintura.

Ainda Danto, no perímetro da descrição do que é o moderno e o contemporâneo, explicava o equívoco de Greenberg, ao considerar que, o único caminho para a arte, e para a própria pintura, era o da redução dos seus elementos à sua essencialidade nos termos da matéria, camadas densas de tinta, planura da superfície, gestualidade do artista, e eliminação dos aspetos Trompe-l’oeil. Com isto, a arte moderna resumia-se a um percurso histórico linear, entrópico, sem a possibilidade de outras contaminações sadias, e abertura para a arte a outras realidades e meios.

José Gil ajudou tão bem na compreensão desta distinção significativa, entre o conceito de contemporaneidade no moderno, enquanto foi presente, e a contemporaneidade no tempo presente. Descrição útil para melhor compreender as obras apresentadas na exposição EXPERIMENTO COLETIVO: CONFLUÊNCIA e, em modo de analogia, corroborar o que o próprio Danto, de maneira tão clara, evidenciou na sua obra “Após o Fim da Arte”.

Esta alusão à contemporaneidade que parece emergir na exposição, torna possível, no enquadramento experimental, e de aprendizagem, característico do próprio Coletivo Amarelo, a demonstração justamente de uma contemporaneidade que não se cinge apenas a um tempo, mas a vários tempos, e a várias épocas. É essa a tónica forte desta exposição. Contemporaneidade não no domínio do que é feito enquanto tempo presente, e da época presente, equiparando-se aos demais, mas uma contemporaneidade que é capaz de convocar géneros artísticos diferentes, alguns pop urbanos (que confluem) e colocá-los num mesmo lugar e tempo. Como diria Danto, é como se os artistas pudessem visitar museus, escolher partes importantes e distintas da história de arte e depois dispô-las lado a lado no seu próprio objecto artístico. Sem constrangimentos de maior, quanto a assumir os valores da arte do passado, e sem a obrigatoriedade de explicar exaustivamente as suas escolhas, ou até, justificá-las perante um público, a crítica, ou um deus papão do modernismo, em que se tem sempre que mostrar nova obra, e fazer uma ruptura com o passado. (Não sem esquecer que é também no quotidiano, e no meio concreto das ruas, que os artistas vão recolher os seus elementos, mais próximos da sua vida e das suas referências culturais).

É nesse sentido que Danto é tão importante para reforçar esta ideia de contemporaneidade, e que tão bem se encontra representada nesta exposição.

A arte moderna vivia de bem com a ideia de um coletivo, composto pelos seus contemporâneos, que trabalhavam no sentido de um objetivo comum de rutura com o passado, e com vista a um futuro em que as disciplinas artísticas procuravam o consenso, a singularidade, a essencialidade. Repugnando até a funcionalidade dos tempos passados e o que os mesmos poderiam ter de útil na continuidade da arte. A arte contemporânea, por seu lado, nos domínios da atualidade, enaltece os vários momentos que a arte viveu, e resgata-os para o tempo presente. No sentido em que os artistas os vão utilizar para melhor se adequar às suas intenções e formas de comunicar. Desse modo coexistem, na exposição, vários tempos e meios de fazer pintura. Em que o olhar do visitante é estimulado a revisitar vários momentos da história da pintura, ou resistência ao seu fim. Ou ainda a superação de uma ideia de que a pintura teria chegado ao termo na sua missão de dar continuidade a uma história de arte.

Hoje temos obras, como as de Gianlluca Carneiro, presentes na exposição, que se revestem de uma contemporaneidade que valoriza a heterogeneidade e múltiplas referências, driblando entre formas (e recursos) diversos de atuar, e um recurso à representação sem tabus, e sem comprometer o acordo com a inovação na arte e o seu contributo para o futuro, nos termos em que se entende hoje a história de arte.

Gianlluca Carneiro, geralmente, através das suas figuras por vezes caricaturadas, outras vezes transfiguradas, em pinceladas largas e viscosas, vai narrando uma atualidade, em assuntos que vivencia no dia-a-dia, e que não são alheios a uma sociedade e uma geração como a sua. Carneiro toca os temas políticos e sociais sem que, com isso, e em simultâneo, comprometa a sua busca e experimentalismo pictórico próprio. É como se exorcizasse, sem freios, os seus pequenos monstros, no sentido que dava Danto, quando falava do repúdio que Greenberg manifestava ao surrealismo.

Nos artistas presentes parece, também, manifestar-se um certo parentesco com a pintura pós-moderna da década de 80, com os pintores Bazelitz, David Salle, Harring, ou ainda noutras formas de arte, com Kruger, Levine ou Mapplethorpe. O artista Michael SaintClaire, presente na atual exposição do Coletivo Amarelo, por exemplo, já viu as suas obras vibrantes de cor serem representadas na galeria Soho Contemporary Art.

Osias André, por seu lado, utiliza o corpo enquanto agente de trocas e tensões sugerindo a intimidade, a comunhão em potência. Ao mesmo tempo, essa confluência, pode não chegar a realizar-se. Deixa em aberto, para o observador, a concretização dos seus devaneios. Em simultâneo, convoca, num estado de ambivalência, uma quase abstração de paisagem, em que os corpos, lânguidos, também se fundem, se interlaçam, e agitam, sugerindo ações, em anonimato. Reforçando a ideia do corpo enquanto imolação, suporte de abusos, jogo de poderes, subordinação e exploração, e onde, talvez, povos desfavorecidos parecem sofrer em surdina, suprimidos na sua dignidade e cuidados básicos.

A exposição EXPERIMENTO COLETIVO: CONFLUÊNCIA, com curadoria de Cristiana Tejo, está patente em Marvila até 26 de agosto.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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