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Aurélia de Souza: As Casas – Rui Pinheiro no Museu Nacional Soares dos Reis

Aurélia de Souza: As Casas, patente no Museu Nacional Soares dos Reis, com curadoria e autoria do fotógrafo Rui Pinheiro, leva-nos a conhecer a obra da pintora portuense oitocentista de uma perspetiva diferente: nas casas dos seus colecionadores. A cada fotografia, entre o doméstico e o privado, quietude e estaticidade, interioridade e exterioridade, reverberam a composição, iluminação e uma das temáticas mais frequentes de Aurélia, os espaços da sua intimidade, familiaridade e trabalho. Cenários de uma vida burguesa feminina, desde os interiores da sua casa na Quinta da China à beira do Douro, em que a cozinha, o bordado e a leitura faziam parte do quotidiano, aos jardins e paisagens que a envolvem, muitas vezes enquadrados de dentro para fora, através de uma janela, ponto de luz, iluminando um ambiente de solitude, refúgio e escuridade.

O projeto fotográfico surgiu no âmbito das comemorações do centenário da morte de Aurélia de Souza (1866-1922), que para além da inauguração da exposição Vida e Segredo: Aurélia de Souza 1866-1922 (2022-2023) no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR), Porto, entre outras iniciativas, também constou a realização do catálogo raisonné da artista, iniciado em 2020, pelo MNSR e a Universidade Nova de Lisboa, em parceria com a Universidade Católica do Porto e a Câmara Municipal de Matosinhos, tendo em vista a localização, catalogação e documentação fotográfica, em coleções públicas e privadas de toda a obra da pintora. Apesar do MNSR possuir quase três dezenas de obras, inclusive o aclamado Autorretrato do casaco vermelho (c.1900), muitas das telas, estima-se mais de quatrocentas, encontram-se em espólios privados (noventa e três proprietários identificados até à data). A instituição museológica, devido à tarefa hercúlea, foi a casa dos colecionadores, resultando no trabalho de Rui Pinheiro agora exposto.

A cada fotografia é nos apresentado apenas o local onde as pinturas estão expostas nas habitações dos seus proprietários. Lugares privados e domésticos, onde se denota um senso burguês, recantos com vários tipos de objetos de decoração, coroados pelas obras da pintora. Usualmente, apenas temos a oportunidade de ver este espólio artístico em museus, ou espaços artísticos, expostos e enquadrados, segundo um estudo e projeção curatorial, que nos permite conhecer e apreciar a plasticidade dos quadros num ambiente controlado e com condições aprimoradas para o efeito. No entanto, o que as fotografias de Rui Pinheiro nos revelam é uma outra vida das obras, num ambiente íntimo e quase secreto, num lugar de memórias familiares, no meio de bric-à-brac, fotografias, vasos com arranjos florais, livros, ou objetos de viagem, expostas de acordo com os seus colecionadores, onde por vezes, vemos padrões, tonalidades, texturas e figuras similares ao das pinturas. Veja-se as imagens onde encontramos Autorretrato com laço preto (c.1895), Cozinha Holandesa (1866-1922), ou Rapariga das Argolas (1866-1922).

Nas mais de trinta fotografias, os enquadramentos, cores e iluminação, denotam os interiores pintados por Aurélia, como por exemplo em No ateliê (c.1916), tela em tons sombrios, com a artista prostrada numa secretária de costas, onde apenas é iluminada a pintura de uma paisagem, contra uma janela fechada. Da mesma forma, Cena Familiar, Menina a escrever ao lado de vaso com chagas, ou Cena de Interior com Figura Feminina (obras datas entre 1866-1922), onde em cada cenário, estão pendurados quadros na parede, ou uma janela ao fundo, como foco de luz para um exterior mais luminoso do que o ambiente interior retratado. Ressalvando, a afamada pintura Entre o Almoço e o Jantar ou Interior (1884), na coleção do MNSR, do professor de Aurélia na Academia de Belas-Artes do Porto, João Marques de Oliveira. Uma cena familiar de interior, com três jovens a costurar, envoltas por telas penduradas na parede e iluminadas por um janelão ao centro, revelando uma paisagem bucólica, composição de influência renascentista, que também se encontra nas obras da pintora. Curiosamente, Aurélia também usou a fotografia, enquanto território experimental, focando-se em cenas do quotidiano, ora não fosse seu vizinho, o pioneiro fotógrafo portuense Aurélio da Paz dos Reis, que a ensinou algumas noções da arte que estava a surgir. Na fotografia Grupo familiar na Quinta da China (1866-1922), uma vez mais, encontramos na composição a pintura de uma paisagem, neste caso ao centro, ao lado, como foco de luz uma janela, enquadrando uma cena íntima, em que se disfruta do convívio ao piano.

A temática de capturar imagens de pinturas em habitações particulares, é recorrente na fotografia de interiores ou de arquitetura, muitas vezes para regozijo dos colecionadores em demonstrar as suas obras a um público geral em revistas da especialidade. Todavia, não podemos descurar, que desde os primórdios da fotografia, também houve o desejo de fotografar os artistas nos seus atelieres rodeados pelas suas obras, enquadrando a sua prática artística de uma perspetiva diferente daquela apresentada em museus, galerias e espaços artísticos, que muito irá influenciar o desígnio da arte do século XX e as noções de crítica institucional. Porventura, um dos projetos mais icónicos será o estúdio de Constantin Brancusi, fotografado pelo norte-americano Wayne Miller. Igualmente, as séries fotográficas Louvre (2006-2007) de Candida Höfer, Museum Photographs (1989- ) de Thomas Struth, The Ghosts of Orsay (2020-2022) de Sophie Calle, a obra de Louise Lawler, ou de Diane Neumaier, mostram uma outra maneira de olharmos a apresentação de pinturas e as exposições museológicas.

De acordo com Susan Sontag em Ensaios sobre Fotografia (1977): «Tal como o colecionador, o fotógrafo é animado por uma paixão que, mesmo quando parece ser uma paixão do presente, está ligada a um sentimento do passado».[1] Em Aurélia de Souza: As Casas, Rui Pinheiro, apresenta uma série de fragmentos do interior das casas onde as pinturas de Aurélia de Souza estão dispostas, resgatando a obra da pintora à luz da contemporaneidade, permitindo uma nova leitura sobre a sua prática artística.

Aurélia de Souza: As Casas está patente no Museu Nacional Soares dos Reis até 27 de agosto de 2023.

 

[1] Sontag, S. (2012). Objectos Melancólicos. Em S. Sontag, Ensaios sobre Fotografia (pp. 55-85). Lisboa: Quetzal Editores. (p.81)

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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