Procura-se: corpo – Todo o corpo é político na Sociedade Nacional de Belas Artes
Sou seduzida por todo e qualquer texto ou trabalho de arte que se apresente com a palavra “corpo”. Não tem jeito: se a encontro no título, eu leio, eu vou, eu reparo. Em retrospecto, consigo quase identificar o início desta dependência, aquele primeiro sopro no cigarro que te põe a tossir e a te perguntares porque diabos é que gostam tanto daquilo: foi a experiência de ver ao vivo a obra HOMEM = CARNE / MULHER = CARNE — Dopada, da artista brasileira Laura Lima, na qual uma mulher dorme, imóvel, no chão de uma galeria branca, ligada por uma espécie de tubo de crochê vermelho – como que por um cordão umbilical – a uma das paredes. O texto da exposição referia à performer sedada como “massa escultórica”, mas lembro-me de sentir ali uma energia e presença tão únicas que cheguei a pensar que só um corpo vivo, tornado objeto de arte, poderia suscitar tal estranheza. Nota ao leitor: preciso de mais um trago – tenho ainda de escrever mais algumas linhas para introduzir este texto.
Devo esclarecer que anos de curiosidade não me deixaram mais perto de conclusões. Finalizei um mestrado com uma dissertação sobre o toque no presente e no futuro e, confesso, desviei-me ainda dos dilemas do corpo: o que é? O que pode? Qual é o seu oposto? A verdade é que, de todas as leituras acumuladas, as “breves genealogias” e os caminhos abertos sem destino, a ideia que mais se fixou neste percurso – e que, de alguma forma, também consolou as minhas tentativas frustradas de resolução conceitual – foi aquela de que “corpo” é o termo que sobra, vago e fútil: “[…] a palavra por excelência sem emprego. A palavra a mais em qualquer linguagem” [1], diz-nos Jean-Luc Nancy (que foi e é um grande companheiro nessa jornada viciante e inacabada em busca do corpo). Daí que Danilo Patzdorf – pensador-bailarino brasileiro pouco conhecido, mas não por isso menos inquietante –, sem deixar de reconhecer a própria ousadia, afirme: “a palavra corpo não designa nada” [2].
Naturalmente, uma exposição intitulada Todo o corpo é político intriga-me. Sou imediatamente fisgada a visitar o projeto curatorial da turma de Pós-Graduação em Curadoria de Arte da NOVA FCSH, patente na Sociedade Nacional de Belas Artes. Que usos terão encontrado para uma definição talvez já tão exaurida? Como terão construído uma narrativa em torno de uma palavra na qual se cabe tanto e, ao mesmo tempo, não se cabe nada? A armadilha está implícita. Afinal, que obra de arte não revela, em última instância, uma reflexão sobre o corpo, a sua posição, o seu movimento e as suas relações? As dúvidas acompanham-me, antes, depois e sempre, enquanto descubro as obras de um grupo de criadores quase inteiramente português – à exceção do artista e designer de moda japonês Kosuke Tsumura –, nomes habituais no cenário nacional: Adriana Proganó, Fernão Cruz, Inês Brites, Jaime Welsh, Mané Pacheco, Patrícia Garrido, Sara & André, Tiago Baptista e Vasco Araújo.
Com um programa paralelo de oficinas, visitas guiadas e conversa, a mostra cogita três núcleos temáticos: um primeiro que pondera “sobre o corpo enquanto propriedade; o segundo sobre o corpo enquanto identidade individual; e o terceiro sobre a sua relação com a comunidade” [3]. Na prática, estas fronteiras são impossíveis de distinguir – sendo o corpo este problema tão político quanto filosófico, psicanalítico, semiótico, ecológico, e, é claro, estético. “Soltar um peido em público, bocejar para o presidente, dançar no cemitério ou fazer compras no shopping center: são exemplos de experiência estética?”, indaga-nos Patzdorf [4], ou são exemplos de prática política, social, comunitária? As fotografias 3×4 de Sara & André, por exemplo, denotam mais um comentário sobre um sistema burocrático numa Sociedade da Transparência, um exercício para distender os limites daquilo que supomos ser a nossa identidade social, ou, ainda, uma tentativa de reconhecer-se numa imagem de si que, convenhamos, nunca fica assim tão bem (a dupla de artistas em questão parece ser exceção à regra)?
Na verdade, é pela sua própria índole insistentemente obscura que o corpo nos convida a análises fragmentárias, por vezes estreitas, por vezes ambíguas – já advertia Eduardo Galeano: “[a] Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa” [5]. Assim, também as obras eleitas para o empreendimento de debater sobre o corpo (perdoa a repetição, que conceito difícil de substituir!) e a liberdade só o podem realizar através de metonímias incompletas, embora férteis nas suas propostas. É o caso do corpo cujas vértebras transformam-se em fitas de munições e cabos de fibra ótica, revelando uma coluna estruturalmente violenta, rígida e móvel ao mesmo tempo, num movimento de expansão e apoderamento que reclama o seu oposto – a pausa, a interiorização (UNPRECEDENTED TIMES CREATURES (ANTHROPAUSE), 2020, Mané Pacheco). Ou, ainda, o corpo tornado o seu contorno, as suas (não-) divisas sinuosas e porosas, expondo a arbitrariedade daquilo que reconhecemos como a minha extremidade, a minha “casa”, o meu “templo” – a promessa antropocêntrica da soberania e onipotência do Eu (Me, Me, Me, Me, 2020, Adriana Proganó). Do ser tudo ao ser nada, o corpo pode ainda ser carne frágil e passageira, destituída de ego, mera “massa escultórica” capturada para dentro de uma escuridão imensa, num tempo infinito – na palavra “corpo”, cabe também (quiçá, sobretudo) a palavra Ninguém (2019, Tiago Baptista).
Nesse sentido, é curioso perceber que, ao contrário daquilo que inicialmente deduzi diante da obra de Laura Lima, pode-se muito bem conceber uma exposição sobre o corpo prescindindo-se completamente da sua presença física e humana. Afinal, onde é que se faz um corpo? Quando se faz um corpo? Porque (ainda) fazer um corpo?!
E o vício continua…
Todo o corpo é político está patente na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, até dia 2 de setembro.
[1] Nancy, Jean-Luc Nancy. (2000). Corpus. (Tomás Maia, Trans.) Lisboa: Passagens, p. 21. Ênfase do autor.
[2] Patzdorf, Danilo. (2019). Sobre aquilo que um dia chamaram corpo – Corporalidade nas ambiências digitais. Belo Horizonte: Letramento, p. 44. Ênfase do autor.
[3] Folha de sala da exposição.
[4] Patzdorf, Danilo. “Apêndices para os estudos do corpo e do sexo”. In: Nhamandu, Sue (Org.). Grelo duro: faca na bota. São Paulo: Ed. Córrego, 2018, pp. 290-317.
[5] Poema “Janela sobre o corpo”, do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano.