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Interminável de Artur Barrio no CIAJG

Alguns dos mais relevantes pormenores biográficos de Artur Barrio manifestam-se através da deambulação pela sua obra, no entanto não deixa de ser importante referir que nasce em Portugal em 1945 e que cedo se transfere com a família para o Brasil, em 1955. Este pequeno dado mostra de forma indelével o não-espaço onde Barrio haveria de se colocar a si para depois colocar a sua obra.

“Você até me perguntou há pouco se sou português. Quando chego em Portugal, sou considerado brasileiro, e aqui, de vez em quando, sou considerado português. Então, sou de lugar nenhum, o que também define minha relação com a arte”[1].

Importante também será referir que as primeiras exposições onde Barrio participa – Desenhos em 1967 na Galeria Gemini no Rio de Janeiro (coletiva) e em 1969 P…..H….. no Rio de Janeiro em nome próprio – são os espaços da primeira situação e do consequente registro – termos seminais para a compreensão da sua obra.

Numa visão mais ampla, talvez se possa posicionar este artista na corrente neoconcretista brasileira – uma resposta ao anterior concretismo e que se baseava na valorização da subjetividade da arte em contraponto com a objetividade e o racionalismo impregnados no panorama artístico do Brasil naquela altura. Barrio insere-se, aliás, numa fase mais tardia deste movimento, no seu quadrante mais conceptual e experimental, coevo de nomes como Cildo Meireles, Guilherme Vaz ou António Manuel. A fundamentação teórica vinha da fenomenologia do filósofo francês Marleau-Ponty:

“É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo – mas o transcende ao fundar nele uma significação nova – que as noções objetivas de tempo, espaço, forma estrutura, cor, etc, não são suficientes para compreender a obra de arte, para dar conta de sua “realidade”. A dificuldade de uma terminologia precisa para exprimir um mundo que não se rende a noções levou a crítica de arte ao uso indiscriminado de palavras que traem a complexidade da obra criada. A influência da tecnologia e da ciência também aqui se manifestou, ao ponto de hoje, invertendo-se os papéis, certos artistas, ofuscados por essa terminologia, tentarem fazer arte partindo dessas noções objetivas para aplicá-las como método criativo. Inevitavelmente, os artistas que assim procedem apenas ilustram noções a priori, limitados que estão por um método que já lhes prescreve, de antemão, o resultado do trabalho. Furtando-se à criação espontânea, intuitiva, reduzindo-se a um corpo objetivo num espaço objetivo, o artista concreto racionalista, com seus quadros, apenas solicita de si e do espectador uma reação de estímulo e reflexo: fala ao olho como instrumentos e não olho como um modo humano de ter o mundo e se dar a ele; fala ao olho-máquina e não ao olho-corpo.”[2]

Parte da crítica de arte produzida pelo brasileiro Mário Pedrosa assim como as obras de artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape permitem a criação desta espécie de campo expandido da arte brasileira, permitindo uma “particular crítica do modernismo, estabelecendo os parâmetros explícitos de uma arte pós-moderna, enquadrado no contexto de uma sociedade que não dissimulava, antes acentuava a violência das tensões sociais, económicas e políticas que nela deflagravam”[3].

Inserindo-se neste movimento artístico de rutura, Artur Barrio propõe-se a “salvaguardar a arte de si mesma”[4]através de vários mecanismo que o levam à criação de situações com materiais efémeros que afastam a obra da fetichização do objeto, típica do mundo da arte. O lado perecível dos materiais que utiliza levam-no à necessidade do registo: maioritariamente a fotografia, o vídeo, e o livro de artista, havendo, no entanto, situações em que os vestígios da presença da obra de arte lhe ficam pelo corpo (externo e interno). Tudo isto aproxima a obra de Artur Barrio da esfera da arte sem que esta habite um sítio claro. Para entendermos isto, precisamos de entender os pontos a partir dos quais Barrio principia a sua criação e que ao mesmo tempo servem de lente para a observarmos: a liberdade (nula) de expressão na ditadura e as desigualdades de expressão no capitalismo, não fosse “o contacto com a realidade (…) na obra de Artur Barrio, uma contestação da evidência social dessa mesma realidade(…)”[5].  Podemos, igualmente, utilizar palavras do próprio artista num dos seus manifestos, em que se posiciona “contra as categorias da arte, contra os salões, contra as premiações, contra os júris, contra a crítica de arte”[6].

O ateliê de Artur Barrio é na rua, no espaço social e é aí que a situação surge. Esses locais são nesse sentido privilegiados para a sua criação, no entanto há uma exceção: a possibilidade de intervencionar diretamente espaços convencionais como museus, salões e galerias, dirigindo “acções-relâmpago”[7] que consistiam na criação da situação no espaço expositivo mantendo as regras que orientavam Barrio no exterior. Disso é exemplo o espaço nuclear de Interminável, em Guimarães.

No Centro Internacional das Artes José de Guimarães [CIAJG], a exposição de Artur Barrio demonstra, de uma forma plena, as várias instâncias do seu corpo criativo. Interminável parte de uma instalação com o mesmo título, realizada pela primeira vez em 2005, e que pertence à coleção do museu S.M.A.K (Gante, Bélgica). Esta instalação, que tem a particularidade de existir apenas durante a vida do artista, transforma o espaço expositivo numa espécie de caverna, quase um anti museu: vemos destruição, escuridão, precariedade. Há café espalhado pelo chão, e o seu odor preenche toda a sala. Entre várias inscrições na parede, lemos “O curador é uma necessidade desnecessária”, frase dita pelo artista numa entrevista com a curadora Paula Alzugaray[8]. Apesar desta inospitalidade, somos convidados a deitar num sofá, ao centro do espaço, e até a abrir uma das muitas garradas de vinho tinto disponíveis para os visitantes. Esta atração pelo inóspito é, sem dúvida, uma das grandes qualidades do trabalho de Barrio. Nesta caverna/laboratório, somos atraídos pelo que atrai o artista, entre o visceral e o perecível.

No seguimento da exposição, encontramos uma série de obras pertencentes a coleções institucionais e privadas, assim como do acervo pessoal do artista. Encontramos também documentos e fotografias que auxiliam no estabelecimento de relações entre Barrio e os seus campos de interesse. Das várias obras, destaco Áreas Sangrentas………………(Primeira Parte), que regist(r)a uma situação no regresso a Portugal de Barrio, depois da revolução de abril.

Interminável, de Artur Barrio com curadoria de Marta Mestre e de Luiz Camillo Osorio, está patente até 3 de setembro.

 

 

[1] Alzugaray, P. & Barrio, A. (s.d.). A Insubordinação de Artur Barrio. Adquirida a partir da página UOL: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1759,1.shl

[2] Excerto do Manifesto neoconcreto publicado em 1959 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil

[3] Fernandes, J., Basbaum, R., Basualdo, C., Barrio, A. (2000). Artur Barrio – Regist(R)os. Porto: Fundação de Serralves. p. 12.

[4] Leal, Miguel – Um outro orgânico mutante. In: “Projeto Bunker (1996-99). Coimbra: Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 2000. p.3.

[5] Fernandes, J., Basbaum, R., Basualdo, C., Barrio, A. (2000). Artur Barrio – Regist(R)os. Porto: Fundação de Serralves. p.17.

[6] Fernandes, J., Basbaum, R., Basualdo, C., Barrio, A. (2000). Artur Barrio – Regist(R)os. Porto: Fundação de Serralves. p.226.

[7] Fernandes, J., Basbaum, R., Basualdo, C., Barrio, A. (2000). Artur Barrio – Regist(R)os. Porto: Fundação de Serralves. p.49.

[8] Alzugaray, P. & Barrio, A. (s.d.). A Insubordinação de Artur Barrio. Adquirida a partir da página UOL: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1759,1.shl

 

Daniel Madeira (Coimbra, 1992) é licenciado em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes da mesma universidade. Coordenou, entre 2018 e 2021, o Espaço Expositivo e o Projeto Educativo do Centro de Artes de Águeda. Atualmente, colabora com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC).

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