Lisboa Soa ou a arte de escutarmos juntos de forma consciente
Som. Perceção de vibrações que se propagam no ar e corpos que vibram para as produzir.
Num mundo cercado de ruído, por muitos tornado em infeliz trivialidade, o silêncio pode ser fortuito e precioso. O som das grandes cidades transfigurou-se, perdeu-se-lhe a consciência e também ao seu oposto. Este último que, por sorte quando ainda discernido, reduz-se a desejo voraz que poucos conseguem deter. Silêncio. A consciência do som implica a falta dele: a prática da pausa, algo que é hoje essencial ao corpo e à mente, também ao diálogo e à inclusão.
Com direção artística de Raquel Castro, o Lisboa Soa é um projeto que reúne, sob a alçada da arte sonora, performances, instalações e workshops em vários espaços da capital. Um convite a um encontro no espaço coletivo, partilhado por todos, onde o impacto sonoro de cada elemento é fator determinante nas relações que se estabelecem, no entendimento e nas leituras do lugar. Escutar ativamente é a proposta do festival, o mesmo que dizer, lucidez sobre o espaço, o Outro, e o Eu.
Este ano nas Carpintarias de São Lázaro e no Quartel Cabeço de Bola, o festival decorre entre 24 a 27 de Agosto.
Que faísca fez nascer o Lisboa Soa?
Raquel Castro: Esta iniciativa surge de um percurso profissional e académico que comecei a trabalhar há 20 anos, relacionado com as questões do som e da ecologia acústica. Nunca deixei de me surpreender pelas várias vertentes do som, tendo sempre considerado que estas podem e devem ser pensadas sob diferentes pontos de vista: políticos, culturais, ecológicos… Desde sempre fui presenciando instalações sonoras e investigando qual a melhor forma de expor som, o que me foi despertando para a sua exploração enquanto estímulo à nossa capacidade de escuta. A melhor forma de exibir som é, assim, análoga à criação de um tempo para se pensar nele.
O que diria ser aquilo que torna o festival único?
O Lisboa Soa não é um festival de música experimental ou electroacústica, fechado a um público especializado, é sim uma procura de trazer a arte sonora até às pessoas de forma acessível e aberta. Por outro lado, pretende ter uma dimensão educativa, já que considero que o grande legado da ecologia acústica é ter criado um conjunto de ferramentas de cultura e educação auditiva.
Mais do que “festival”, agrada-me a ideia de ser um encontro em espaço público onde todos têm tempo e consciência para se dedicar ao ato de escutar, o qual é bastante negligenciado no dia-a-dia.
Refletindo precisamente sobre escuta ativa, gostaria que comentasse a frase «Sem atenção, não há ética para a ação. Escutar torna-se essencialmente um ato político.»
Se pensarmos nas várias crises que existem no mundo e na sociedade, apercebemo-nos que é frequente a falta de diálogo com vista ao entendimento. Eu acredito que o ato de escutar acontece não apenas com o Outro, mas também com os ecossistemas e as simbologias culturais, isto é, tudo o que nos permita compreender melhor o envolvente. Contudo, para que um diálogo seja fértil, devemos ter a capacidade de nos escutarmos mutuamente, caso contrário é impossível manter uma via aberta nos dois sentidos. Sem atenção não há um lado ético. Surdos, desatentos ao que nos rodeia, alheios à vontade de comunicar, não podemos agir para um coletivo, sermos um todo.
Apresentam-se como um festival que «…visa potenciar a criação artística, mas também dar-lhe um contexto social, político e ecológico…» É, portanto, de assumir que existe uma linha de trabalho baseada na relação com o lugar e as suas comunidades. Como se dá essa relação com o contexto, e que questões específicas sociais e políticas são essas a precisar ser discutidas?
O Lisboa Soa tem vindo a ocupar diferentes espaços públicos, os quais, por princípio, são locais onde as pessoas se podem encontrar e discutir ideias. Além disso, e sobretudo depois da pandemia, são lugares que adquiriram uma outra importância, devendo proporcionar segurança e bem-estar individual. Por todas as suas características, o espaço público é um ambiente capaz de albergar múltiplos ritmos e diversidades.
Este ano, a Sonora – a associação que produz e pensa o festival – instalou-se no Quartel Largo de Residências, no Largo Cabeço de Bola, local inclusivo onde convive muita gente que trabalha em áreas artístico-culturais distintas, simbolizando tudo aquilo que é o princípio deste ano: precisamente essa ideia de necessidade de estabelecimento de espaços urbanos que acolham em coexistência diferentes grupos de pessoas. Tudo isto surge ainda do facto de Lisboa, uma cidade desde sempre caracterizada pela particularidade dos seus bairros, começar a tornar-se homogénea, o que revela consequências a nível da identidade, da diversidade e da justiça social; questões que deram mote ao tema deste ano Multiplicidades.
Partindo ainda dessa citação, o festival invoca um foco na sustentabilidade urbana. O que significa exatamente?
Sempre nos definimos como um festival de arte sonora ambiental, de tal forma que as questões ecológicas estão muito presentes. Quando refiro sustentabilidade urbana, atento no facto de que numa cidade (onde os contrastes são mais notórios), distintos grupos sociais têm uma capacidade diferente de viver em locais teoricamente mais adaptados ao seu bem-estar e prosperidade. Isto é pensar a sustentabilidade enquanto questão de igualdade, de justiça e de inclusão. Considerando-o não apenas numa perspetiva humana, mas também global – todos os ecossistemas, seres e elementos que habitam o planeta.
Mais do que trabalhar o termo enquanto conceito, de que forma é o festival capaz de atuar nesse sentido? É possível referir exemplos que tornem a sua prática mais sustentável?
Isso é um debate crucial e que mantenho, de forma a assegurar um maior controlo das consequências. Evitamos o excesso de impressões, a produção de materiais desnecessários, e tentamos sempre uma produção local, privilegiando trabalhos criados em Portugal. Ainda assim, enfrentamos o grande problema das viagens de avião. A nossa vontade é de estender a estadia dos artistas, por exemplo, para virem a uma residência ou workshop, além do concerto/performance; o que justificaria melhor a pegada ecológica, convertendo-se numa maior diversidade artística e, simultaneamente, representando uma oportunidade de criação para o próprio autor. Existem, portanto, muitos aspetos a melhorar, mas cuja eficácia eu reconheço depender de uma série de recursos, nomeadamente económicos, que não possuímos.
O festival remete com frequência para elementos naturais, numa tentativa de aproximar o público a uma experiência sensorial além-urbe. Falando-me brevemente sobre essa necessidade, pergunto: é fácil encontrar natureza/o natural no centro de Lisboa? Mais ainda, silêncio?
Para mim é interessante pensar como se podem trazer elementos naturais para dentro do festival, já que defendo a biofilia, a tendência inata do ser humano em procurar conexões com a natureza e outras formas de vida. Mais ainda, acredito na necessidade de existir natureza na cidade, porque me parece que Lisboa diluí estas questões em prol da prioridade turística.
No que respeita ao silêncio, na verdade ele carrega um enorme simbolismo. É a existência de som que se traduz em vida e saúde nas nossas ruas. Aliás, nas sociedades marginalizadas ou reprimidas, o silêncio é reflexo de ditadura, censura, ou incapacidade em se fazer ouvir. Enquanto nas grandes cidades dos países mais desenvolvidos, o silêncio é classicista – apenas grupos sociais mais elevados conseguem ter acesso e proteger esse silêncio. Este tem, assim, várias faces. Um dos grandes problemas atuais é que, com tanto ruído, nem sempre cada uma das vozes tem oportunidade de se manifestar ou fazer ouvir. A ideia de pausa é fundamental: só se dá conta do som pela sua inexistência. E o interesse em trabalhar em espaços públicos vem do facto destes serem uma arena de encontro de vários sons, vozes, ritmos e seres. Agrada-nos a ideia de trazer as pessoas a espaços que lhes pertencem para reinventar a sua experiência no local através da sua fruição sensorial, possibilitando uma ligação a esse espaço de uma forma que está, muitas vezes, apagada no dia-a-dia. Experiência esta que é também a consciência da diversidade que naturalmente existe nesse ambiente, quer a presença de diversos elementos/seres, quer dos vários sons e vozes, nossos, do Outro e do lugar.
O que podemos esperar do programa deste ano?
Nascido dessa ideia de Multiplicidades, ou de quantas cidades existem dentro de uma cidade, desenhámos um programa multigeracional e não segmentado, pois gostamos da ideia de pessoas de diferentes áreas, ideias e idades encontrarem uma proposta do seu interesse e na qual possam participar.
Esta edição baseia-se num forte programa educativo, com workshops destinados tanto a crianças, como a profissionais do som. Alguns deles ligados à escuta performativa e também ao canto. Promoveremos uma caminhada multissensorial, que irá conduzir o público a uma experiência do local através dos 5 sentidos, mais uma vez sublinhando a importância da coexistência entre humanos e não-humanos. Teremos ainda várias instalações sonoras e, ao final da tarde, concertos e performances no Quartel, complementados por igual programação nas Carpintarias de São Lázaro.
Mais informação em: https://lisboasoa.com/