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Fertile Futures organiza seminário internacional de Verão no Fundão

As escombreiras das minas da Panasqueira são feridas abertas que latejam na paisagem do Cabeço do Pião; ribeiras cujo acesso foi impedido pela própria natureza são apagadas da memória da população local; um poço, outrora ponto de abastecimento de água, encontra-se tapado por questões de segurança; e se as técnicas ancestrais de eletrocultura efetivamente funcionarem economizando o uso de água e fertilizantes?

Estas são apenas algumas das reflexões lançadas pelas sete equipas compostas por estudantes de arquitetura nacionais e internacionais com a tutoria das equipas das oficinas de projeto, parceiros e pessoas locais, que ocuparam o município do Fundão durante duas semanas no mês de julho, participando em visitas de campo, conferências, workshops e na auto-construção de instalações.

Organizado por Fertile Futures, projeto que representa Portugal na Bienal de Arquitectura de Veneza 2023, com curadoria de Andreia Garcia e dos curadores adjuntos Ana Neiva e Diogo Aguiar, o Seminário Internacional de Verão, expande a reflexão lançada em Veneza, alertando as novas gerações de arquitetos para a importância das questões ecológicas na prática da arquitetura, convidando as várias equipas a refletir sobre a escassez, gestão e manutenção da água doce naquele território.

Uma das cidades portuguesas incluídas na missão da União Europeia para Adaptação às Alterações Climáticas, o Fundão sofre com a escassez de água, a desertificação, a suscetibilidade de incêndios e é palco de uma agricultura superintensiva.

Ao chegar ao Cabeço do Pião é impossível ficar indiferente à grandiosidade das escombreiras das minas da Panasqueira que violentamente rasgam o manto verde que cobre os montes e vales da paisagem envolvente. Ao fundo escutam-se as vozes dos estudantes que integram a equipa tutoreada por Guida Marques – “Ai la li la, ai la lé la / Ai la li la, ai la lé / Ai la li la, ai la lé la / Ai la li la, ai la lé la, ai la lé la ló meu bem; apressa-te, ó meu amor, repara o nosso bem.” Ensaiam enquanto cozem as bandeiras que utilizarão na performance que acontecerá dentro de poucos dias nos trilhos da serra do Açor alertando-nos para a necessidade de reparar aquele território.

Cânticos que ecoam no nosso corpo. Um gesto que chora o lugar ao mesmo tempo que o valoriza e o enche de esperança. Ficará um manual de reparações onde são evidenciados os actos de reparação necessários naquele local – o arranjo da estrada, a substituição das infraestruturas de água e de saneamento, a necessidade de efetuar um loteamento e atribuir habitações à população local, entre outros.

Deslocando-nos para a aldeia de Janeiro de Cima, a narrativa é utilizada de um modo crítico e arquitectónico para a criação de cenários e para o pensamento do lugar pela equipa que conta com a tutoria de Space Transcribers. Conjugam-se as histórias trazidas de diferentes geografias pelos vários elementos da equipa com o território do Fundão, histórias que contam a relação distinta que cada um tem com a água tendo em conta a sua origem.

Aludindo a Gil Vicente, “O Auto da Barca de Janeiro de Cima” é o resultado do cruzamento das diferentes histórias onde cenários de despovoamento e seca do território são conciliados com mitos e fábulas. Uma metáfora para uma diáspora ambiental que existe hoje em dia a uma escala global. Narrada através de uma performance, a partir de uma barca conduzida no rio Zêzere, a história é complementada por vários objetos que vão sendo descobertos nas margens do rio, que estabelecem uma relação direta com o elemento água. Estes objetos foram concebidos pela equipa entre a Casa do Barro, no Telhado, e a Casa das Tecedeiras, em Janeiro de Cima, durante o período do Seminário.

Já a equipa com tutoria de Dulcineia Santos Studio utiliza o desenho como ferramenta síntese de análise do território a partir de três sistemas – hidrológico, biológico e social. Centra-se no estudo e desenho de uma linha de água secundária de modo a documentar o conhecimento resultante dessa pesquisa. Conhecimento esse que será partilhado com o público e essencialmente com a população local. Trata-se de uma forma processual de abordar a questão da água, uma contínua aprendizagem de registo e incorporação de conhecimento.

Duas escadarias construídas com fardos de palha colocadas lado a lado e orientadas segundo ambos os sentidos do rio (montante e jusante), constituem um lugar para contemplar o rio. A sua escala, disposição e orientação permitem diferentes experiências, subindo ou descendo as escadas, percorrendo o espaço entre os dois corpos ou apenas sentando-nos num ou noutro nível. É este o resultado do trabalho desenvolvido pela equipa com tutoria do Corpo atelier. Uma abordagem que encontra referências no bucolismo e sensacionismo de Alberto Caeiro, onde a ambição é apenas estar e contemplar, ativar os sentidos e parar o tempo, encontrando-se desprovida de qualquer significado.

No Fundão, a equipa tutoreada pelo Ponto atelier ocupou o edifício do Seminário Menor, atual Centro para as Migrações, e deu continuidade ao estudo de “water typologies” que a oficina de projeto havia iniciado em Veneza. Focando-se em “water elements”, partiu do sistema de alimentação e drenagem de água do jardim situado no claustro do edifício, para o desenho de um espelho de água sobre o ponto principal desse sistema, um poço ao centro do espaço que foi emparedado por questões de segurança.

Ao reativar o elemento água neste ponto, o jardim readquire o seu significado e ganha um dispositivo destinado à fruição diária dos atuais utilizadores do edifício – migrantes, refugiados – incentivando o seu relacionamento com a água. Este novo centro para além de reescrever o valor da água, estabelece um ponto de encontro no claustro do edifício, lugar que seria de atravessamento e não de permanência.

A oficina Pedrêz desafia a sua equipa a criar um campo de ensaio no sentido de entender empiricamente se a técnica milenar de produção agrícola, eletrocultura, funciona ou não. Esta técnica, utilizada durante o século XIX e interrompida durante o século XX, utiliza a energia electromagnética na alimentação de culturas. Se funcionar, poderá ser uma forma de reduzir significativamente o consumo de água das plantas uma vez que a própria água funciona também como condutor de um fluxo de energia necessário ao crescimento das espécies vegetais. Ao introduzir essa energia na própria terra, não será necessário conduzi-la através da água.

Por último, a equipa com tutoria do Ilhéu atelier, intervém na aldeia de Castelo Novo. Situada no sopé da Serra da Gardunha, a aldeia dispõe de água em abundância resultante do escoamento da montanha. O grupo opta por intervir na praia fluvial, escrevendo na ribeira de Alpreade um excerto do poema “Sempre a água”, retirado da obra de Eugénio de Andrade, poeta nascido numa aldeia muito próxima, a aldeia de Póvoa da Atalaia.

“Fluir em lugar de ser pedra” lê-se nos vários elementos em betão pigmentado de cor-de-rosa dispostos em vários pontos da praia fluvial de Castelo Novo, como se de pedras que se soltam da ruína existente no lugar se tratassem – uma gárgula permite usufruir da queda de água entre os dois níveis da ribeira, um degrau resolve o desnível que existe no seu acesso, um banco permite a estadia naquele lugar e um quarto elemento, agarra a intervenção à ruína que ali existe. A frase, enquadrada nas questões ambientais introduzidas por Fertile Futures, sugere uma libertação das “pedras”, preconceitos, vícios e outros pensamentos que herdamos indiciando um fluir dos pensamentos e de um caminhar para o futuro.

As propostas desenvolvidas pelas sete equipas, tal como os trabalhos apresentados em Veneza, desafiam a disciplina da arquitetura, propondo formas de operar que vão para além do desenho de edifícios ou da construção de espaços. Lançam proposições para um futuro que se procura fértil. Segundo a equipa curatorial, “o Seminário ambiciona sensibilizar as gerações futuras para modos alternativos de fazer arquitetura, favorecendo o lastro e o futuro do projeto Fertile Futures para além do tempo da exposição.” Em conversa com os alunos, é notória a surpresa em trabalhar certas questões no âmbito de um seminário de arquitetura. Sem dúvida que os desafios lançados e os diálogos estabelecidos contribuíram para uma visão mais abrangente e transversal da prática da arquitetura por parte destes jovens. Arquitetura é isto mesmo, um constante pensar no futuro para que o seu desenho responda às urgências de cada tempo contribuindo para a criação de futuros férteis.

O registo do trabalho das várias equipas será apresentado numa exposição a acontecer em Lisboa assim como num catálogo que dará continuidade ao catálogo lançado na inauguração da exposição em Veneza.

Joana Duarte (Lisboa, 1988), arquiteta e curadora, vive e trabalha em Lisboa. Concluiu o mestrado integrado em arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa em 2011, frequentou a Technical University of Eindhoven na Holanda e efetuou o estágio profissional em Xangai, China. Colaborou com vários arquitetos e artistas nacionais e internacionais desenvolvendo uma prática entre arquitetura e arte. Em 2018, funda atelier próprio, conclui a pós-graduação em curadoria de arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e começa a colaborar com a revista Umbigo.

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