desenhos para coser sem agulha de Rosana Ricalde no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra
Inspirada em Penélope, figura da mitologia grega, Rosana Ricalde parte de uma interpretação ampla do ato de tecer, procurando, entre gestos mitológicos e gestos desvirtuados pela sua aparente banalidade, as várias significâncias de uma atividade ancestral e, de certo modo, uniformizadora de tempos.
Se Penélope fez da missão de tecer um sudário para Laerte, pai de Ulisses, um dispositivo de controlo temporal, fazendo-o de dia e desfazendo-o à noite, com o objetivo de ganhar tempo (essa expressão infinita), muitas têm sido as tecedeiras que, de uma forma aparentemente menos instrumentalizada, usam o seu tempo nesse ofício, num sentido de ocupação, como um gesto diletante de fuga. Estes autênticos desenhos e, inevitavelmente, instrumentos comunicacionais são vestígios palpáveis da sonegação da voz feminina ao espaço da pólis: “restrita a casa, restando a ela o fio e a roca (…)”[1]. Remetem igualmente a um tempo, a um saber e até a uma localização geográfica de um tipo de produção que se tem vindo a perder e que muito se aproxima do conceito de kitsch mas que ganha, nesta exposição, o estatuto de objeto artístico que é subitamente colocada no campo da arte contemporânea, pelo gesto concomitantemente recolector, intervencionista e prolongador de Rosana Ricalde.
Esta trialidade do gesto da artista prende-se em dois motivos: se por um lado há uma ação de colecionar rendas, bordados, labirintos e pontos de cruz – registos do eco de milhares de movimentos – por outro há uma intervenção que se manifesta na intenção de continuar esses desenhos, desta vez sem agulha, procurando um confronto temporal, possibilitado por este trazer à vida.
O campo cinético que paira sobre a superfície destes têxteis, forma só por si, uma coreografia de ações mecânicas, devidamente distanciada do universo industrial. Como se cada corpo produtor de um destes trabalhos tenha sido uma fábrica de suster um conjunto de gestos, e com o gesto vem tudo o que já se falou neste texto, ou quase tudo: de onde vem, quem o faz e a que tempo pertence. Uma forma de comunicação encriptada, cada vez mais longínqua.
Rosana Ricalde parte destas grafias feitas, desenho pela distância a que se colocam do espectador, apropriando-se das mesmas para dar um novo rumo para estas linhas, outrora cosidas com agulhas. Entre momentos mais e menos simétricos, a procura por uma resposta a estes objetos do passado reflete-se sempre num fluxo representativo das suas possibilidades.
A exposição desenhos para coser sem agulha, de Rosana Ricalde, poderá ser visitada até dia 14 de setembro, no Quarto 22 do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, de segunda a sexta, das 14h às 18h.
[1] Texto de Rosana Ricalde na folha de sala da exposição