Neo-Pós-Neo
Há uma pintura por de trás da pintura e por de trás da pintura e da outra pintura há uma pintora e a pintura vem daí: do corpo da pintora.
Mariana Gomes apresenta a exposição Neo-Pós-Neo, que estará em exibição até o dia 16 de setembro na Cristina Guerra-Contemporary Art, localizada no bairro Estrela, em Lisboa. As nove pinturas que compõem a mostra, ou melhor, as nove repinturas que compõem a mostra são telas que já estiveram expostas em 2019 nas mesmas paredes onde estão, mas agora são diferentes, em 4 anos passaram por transmutações, e já não são mais as mesmas. As novas camadas gestuais de tinta a óleo dão às telas expostas novas configurações.
Neo-Pós-Neo é uma exposição que, além de tratar principalmente da linguagem da pintura, também se apresenta como resultado de um processo performativo do ato de repensar, refazer, remanejar e reparar o conjunto de telas expostas. Será essa a versão final dessas pinturas? O facto é que essas estão no aqui-agora. E é sobre elas que continuo a escrever este texto. A curiosidade está presente em todo o trajeto da exposição e é ela que conduz o espectador para ver a exposição de maneira imaginativa.
Acontecimento é uma palavra-chave que nos guia nesta dança do cobrir e revelar as diversas pinceladas e gestos sobre a tela, abordando de maneira profunda o mistério das transformações. Há um misto de expectativa em relação ao futuro e curiosidade em relação ao passado. Algumas dessas pinturas poderiam ser encontradas em cavernas e tumbas antigas a contar sobre a origem de todas as coisas, bem como poderiam ser apreciadas durante uma viagem intergaláctica a partir de janelas que delimitam a vasta diversidade do universo.
Na densidade de materialidade e no contraste de tonalidades opacas e vibrantes, surgem novos corpos que transcendem as formas. No texto curatorial, Nuno Faria enfatiza a sensação de estarmos diante de pinturas-acontecimento, nas quais as formas surgem de dentro umas das outras. É como se fossem duas línguas que estão “lutando” num beijo.
Ao chegar em casa, relembrei de um trecho do romance Ida, de Gertrude Stein (1874-1946), no qual a autora narra um evento que me pareceu relevante compartilhar neste momento. “E então aconteceu qualquer coisa. O que aconteceu foi isto. Toda a gente começou a sentir a falta de qualquer coisa e não era de um beijo, aposto a minha vida em como não era de um beijo que toda a gente começou a sentir falta. E daí talvez fosse. De qualquer forma aconteceu alguma coisa e toda a gente ficou muito exitada por ser alguma coisa e por ter acontecido. Aconteceu lentamente e depois foi acontecendo e a seguir aconteceu um pouco mais depressa e continuou a acontecer e aconteceu e aconteceu na verdade aconteceu e depois tinha acontecido e foi acontecendo e por fim lá estava o acontecimento e se estava é porque estava, mas agora já ninguém se importava. E tudo isto parece estranho, mas é absolutamente verdade.”
Mariana Gomes trata de diversos assuntos em Neo-Pós-Neo. Ao percorrer as diversas camadas desta exposição, fazia conexões com as pinturas luminosas e atmosféricas de Willian Turner (1775-1851) e com a técnica de repintar telas do situacionista Asger Jorn (1914-1973). Há diversas conexões possíveis para essas formas que se cruzam, se encaixam e complementam-se sob esse céu noturno e que me dizem algo sobre o amor e a paixão. Transmutação e magia. São fluidas como o fogo que se alastra sobre o óleo.
Referência bibliográfica:
STEIN, Gertrude. A história de todos e de cada um: Ida. Lisboa: Dois dias edicões, 2022. 175 p. Tradução: Ricardo Alberty e Luísa Costa Gomes