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Histórias de uma Coleção. Arte Moderna e Contemporânea do CAM

Em Espaços da Recordação: Formas e Transformações da Memória Cultural, Aleida Assmann disserta sobre duas formas distintas de memória cultural: a memória cumulativa e a memória funcional. A memória cumulativa diz respeito à catalogação, conservação e organização, a instituições como arquivos, bibliotecas e museus, repositórios que guardam e acumulam testemunhos do passado. A memória latente, «depósito de provisões para memórias funcionais futuras»[1], espaço da possibilidade permanente de renovação. Por sua vez, a memória funcional opera um processo de seleção e constituição de sentido, «delineamento de molduras»[2] onde os elementos que integram a memória cumulativa são relacionados, orientados e vinculados, potenciando a atualização do conhecimento cultural.

Parece ser a articulação destes dois tipos de memória que nos recebe em Histórias de uma Coleção. Arte Moderna e Contemporânea do CAM, patente na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) até 18 de setembro. Aí, um mural multidirecional, que se assemelha ao espaço de depósito do acervo de um museu – onde reside a memória cumulativa -, alberga um conjunto de 73 obras de autores nacionais e internacionais, realizadas entre 1890, Retrato do Eng.º João Burnay, de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), e 2021, Mondo de Jorge Queiroz (1966) e Assalto de Fernão Cruz (1995). Esta seleção – do campo da memória funcional – estabelece a abordagem ampla à Coleção, assumida pelas curadoras Ana Vasconcelos, Leonor Nazaré, Patrícia Rosas e Rita Fabiana, nesta exposição que assinala o 40.º aniversário do Centro de Arte Moderna Gulbenkian (CAM), antecipando a sua reabertura em 2024. Nela é revelado o modo como a arte é selecionada, apresentada e interpretada mediante as diretrizes sociais e culturais de cada momento, explorando as histórias por detrás da constituição da Coleção, e o modo como elas se entrelaçam na história da instituição.

Ao longo do percurso expositivo, que tem início na Galeria Principal e se estende ao Edifício Sede da Fundação, ao Museu e ao Jardim, acedemos aos principais momentos da constituição da vasta e conceituada Coleção de Arte Moderna e Contemporânea da FCG, que compreende atualmente cerca de 12 mil obras, de diversas cronologias, técnicas e suportes, de representação maioritariamente portuguesa, mas que inclui também um conjunto significativo de obras de arte britânica, arménia e do Médio Oriente.

Fundada em 1956, a FCG tinha como principais desígnios o apoio aos artistas e a educação dos públicos para a arte, dando-lhes a conhecer a criação artística do seu tempo, através de exposições em Portugal e no estrangeiro. A constituição da Coleção acompanhou o desenvolvimento da instituição, e os seus princípios, que tinham como decisor na aquisição de obras o então presidente da Fundação, José de Azeredo Perdigão, em conjunto com o Serviço de Belas-Artes, são explorados no primeiro núcleo da exposição, intitulado O Início: 1958-1978. Aí, são destacadas as Primeiras Aquisições, realizadas na década de 1960, reveladoras de alguns dos eixos centrais de constituição da Coleção. Por um lado, a aquisição de obras a artistas apoiados pela FCG mediante bolsas de estudo no estrangeiro, como Arcanjo (1962) de João Cutileiro (1937-2021) e Retrato de Grimau (c. 1964-1965), de Paula Rego (1932-2022). Por outro, a importância da relação com o Departamento de Belas-Artes do British Council nas primeiras aquisições de obras para a Coleção de Arte Moderna Britânica, como Renaissance Head(1963) de David Hockney (n. 1937) e Ripple (1963) de Phillip King (1934-2021). Título desconhecido (Coty)(c.1917) de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), adquirido em 1968 a Lucie de Souza-Cardoso, viúva do pintor, e Les Degrés (1964) de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), adquirida em 1968 à Galerie Jeanne Bucher, remetem para a presença significativa destes dois artistas na Coleção, o primeiro representado com 200 pinturas e desenhos, a segunda com 172 pinturas e gravuras[3]. Por fim, Retrato de Fernando Pessoa de José de Almada Negreiros (1893-1970), encomendado em 1964, remete para a importância do artista na história da Fundação. Autor do painel em relevo Começar (1968) que marca a entrada da Sede da FCG, e a quem foi dado particular destaque na exposição inaugural do CAM, a 20 de julho de 1983.

Na secção seguinte, É indispensável inaugurá-lo: 1979-1989, são apresentadas obras adquiridas no contexto da construção e instituição do CAM, primeiro espaço em Portugal com uma exposição permanente de arte moderna e contemporânea, cuja direção foi assumida pelo arquiteto José Sommer Ribeiro, até 1994, período durante o qual que se responsabilizou pelas aquisições da Coleção, com o apoio de Azeredo Perdigão. Sublinha-se aqui a importância da aquisição, em 1983, de uma parte significativa da coleção particular de Jorge de Brito, que incluía pinturas e obras sobre papel de artistas portugueses e internacionais do século XX. Dessa integração estão presentes neste núcleo obras como K4 Quadrado Azul (1916-1917) de Eduardo Viana (1881-1967), O Pintor Altberg e a mulher (1932), de Mário Eloy (1900-1951), Prédios e Janela (1930) de Sarah Affonso (1899-1983) ou Odalisque à l’Esclave II, d’après Ingres (1969) de Júlio Pomar (1926-2018).

Em Depois das Belas-Artes: 1990-2005, sublinha-se a diversificação da programação do CAM e das aquisições da Coleção, mediante a atuação de Jorge Molder enquanto diretor da instituição, entre 1994 e 2009. Destaca-se a incorporação de uma grande diversidade de meios e suportes, e o começo da integração da fotografia na Coleção, entendendo o seu valor artístico e conceptual. Desde logo, em 1994, foram incorporadas 50 fotografias de Fernando Lemos (1926-2019), representadas na presente exposição por Eu (Auto-retrato) e A mão e a faca (1949-1952), doadas pelo artista à Fundação. Nesta secção destaca-se Torah (1973) de Ana Hatherly (1929-2015), Pintura Cega (Três Instrumentos de Prazer e um de Morte) (1990) de Julião Sarmento (1948-2021), Geografias do Sagrado (1998) de Graça Morais ou a inquietante instalação The Rest is Silence II (2003) de Noé Sendas (1972).

Por fim, Permanentes e temporárias: 2006-2020 destaca a programação e aquisição de obras desde a celebração dos 50 anos da FCG, assinalados por um extenso programa e uma apresentação da coleção que conjugava os artistas consagrados com a criação artística mais recente, passando pela ação de Isabel Carlos e Penelope Curtis enquanto diretoras do CAM, entre 2009 e 2015, e 2015 e 2020, respetivamente. Revela-se nesta secção o modo como se considerou necessário diversificar as obras adquiridas a nível dos suportes e das técnicas, e enriquecer a Coleção com obras de artistas lusófonos e uma maior representatividade de mulheres artistas. Destaca-se a convocação da omnipresente voz de Luísa Cunha (1949) em Senhora (2010), Upa! União dos Povos de Angola (2006) de Miguel Palma (1964), o tríptico Vanitas (2006), encomendado a Paula Rego, Lagoa (2006) de Rosângela Rennó (1964) ou os Bunis (1994-2020) de Joana Vasconcelos (1971).

Nota ainda para a espectral Bosques Tão Selvagens (2009) de Susan Philipsz (1965), e para Paisagem Não-Paisagem (Jardim) (2016) de Fernanda Fragateiro (1962), que convocam o nosso corpo e sentidos na sua inusitada instalação no Jardim da Fundação.

Revelando as inúmeras formas de explorar, interpretar e apresentar uma coleção de arte, ao longo da exposição transparece o entendimento e conceção do museu, e da sua coleção, enquanto organismos vivos, em mutação, que preservam o passado, permitindo a sua interpretação aos olhos do presente, e abrindo espaço para o estabelecimento de diferentes, e por vezes inesperadas, relações. Tal como defende Boris Groys, em Art Power, «este é, talvez, o verdadeiro paradoxo do museu: a coleção do museu serve a preservação de artefactos, mas essa coleção em si mesma é sempre extremamente instável, constante em mudança e em fluxo. (…) A exposição do museu flui permanentemente: não está apenas a crescer ou a progredir, mas sim a modificar-se de muitas maneiras diferentes.»[4].

De facto, num percurso de encontros e reencontros, de descoberta da história do CAM e da história da arte nacional e internacional, demonstra-se como a memória funcional, sob a forma de seleção e enquadramento curatorial e mediante diferentes modos de apresentação das obras que compõem a Coleção, abre terreno fértil à eclosão de histórias múltiplas e novas e imprevisíveis narrativas em fluxo, complementares e contíguas, antagónicas e anacrónicas, permitindo a atualização do conhecimento e a possibilidade permanente de futuro.

Histórias de uma Coleção. Arte Moderna e Contemporânea do CAM, com curadoria de Ana Vasconcelos, Leonor Nazaré, Patrícia Rosas e Rita Fabiana, está patente na Fundação Calouste Gulbenkian até 18 de setembro.

 

[1] Assman, Aleida. (2011). Espaços da Recordação: Formas e Transformações da Memória Cultural, Campinas: Editora da Unicamp, p. 150.

[2] Ibidem, p. 150.

[3] Cf. Rosas, Patrícia. (2023). «A Criação de uma Coleção: as primeiras «exposições itinerantes» da Fundação Calouste Gulbenkian» in AA.VV. (2023). Histórias de uma Coleção. Arte Moderna e Contemporânea do CAM. Catálogo da Exposição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 34.

[4] «This is, perhaps, the true paradox of the museum: the museum collection serves the preservation of artifacts, but this collection itself is always extremely unstable, constantly changing and in flux. (…) The museum exhibition flows permanently: it is not only growing or progressing, but it is changing itself in many different ways.». Groys, Boris. (2008). Art Power. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, p. 39.

Inês Grincho Rego (Lisboa, 1994) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e mestre em História da Arte Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Tem articulado o trabalho de investigação em história da arte contemporânea com a atuação enquanto mediadora e assistente de coleções em vários museus da cidade de Lisboa (Museu do Mar Rei D. Carlos, MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, entre outros).

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