Inhabitants ou imitar o andar, de Nuno Sousa Vieira
Durante décadas as antigas instalações da fábrica de plásticos da SIMALA foram porto de abrigo e ateliê de Nuno Sousa Vieira. O espaço era imenso, com áreas generosas para se trabalhar, sem que a passagem do tempo e a sessação das atividades fabris fossem escamoteadas, retocadas ou apagadas. O espaço, pretérito e presente, feito de património construído e memórias afetivas ou familiares, cedo constituiu a força motriz e o campo de investigação de Sousa Vieira, uma vez que é através dele que o ser humano mais toma consciência (fenomenológica, se quisermos) do seu corpo e da relação com os outros.
Neste contexto, cada obra é uma imensa exploração arqueológica e industrial de resgate, tratamento, recriação, simulação e interpretação da vida que foi, que é e que poderá ser. E, como tal, não podemos de deixar de ver na sua obra uma certa visão crítica sobre o projeto da Modernidade e respetivas construções e produções (no que têm de mais brutal e humano): o trabalho, a hiperprodução, a racionalidade, a ideia de progresso, de cientificidade – mas também de erro, de desvio, de falha ocupam um lugar importante na sua obra. Encontrar um sentido no meio do legado moderno e pós-industrial, e desenvolver um forma de habitar o mundo, parece ser evidente em muitas das grandes instalações e exposições que realizou ao longo da sua carreira.
O atelier funcionava como catalisador, lupa e diário artístico da sua visão sobre o mundo. Simultaneamente estúdio e ruína, a antiga SIMALA era um desses lugares-mistério que poucos tiveram a oportunidade e o privilégio de visitar. Era um lugar ambivalente e emocionante, que obrigava o visitante a confrontar-se com uma dimensão temporal e espacial que não obedece aos parâmetros de uma certa perspetiva, talvez burguesa ou acética, da realidade, que recusa a alteridade de arestas e vértices perigosos, bolores nas paredes, vidros partidos, a inexistência de eletricidade, saneamento básico e conforto. Na verdade, tudo, ali, era negação e a recusa de uma comodidade ou bem-estar. Tudo, ali, parecia recusar o ócio, o lazer. Aquele era um espaço de trabalho, que obriga o artista a recalibrar constantemente o seu posicionamento, perceção e entendimento sobre o mundo e a vida.
Inhabitants ou imitar o andar é a primeira exposição que o artista concebe depois de deixar o edifício da SIMALA, sem que constitua, no entanto, um requiem melancólico ou um exercício sentimentalista, pesaroso e nostálgico. Há aqui mais esperança que tristeza, mais otimismo que pessimismo, mais transformação que cristalização. O ato artístico, como o artista referiu noutras ocasiões, não deve ficar refém de um lugar: o espaço é uma matéria plástica, cambiante, cambiável, com multitudes dentro dele – simulações de muitos outros lugares, escalas, dimensões, como, aliás, 3×4 | Para ver (2023) parece sugerir. O espaço é um potencial subversivo, capaz de se transformar e metamorfosear no seu propósito relacional e ocupacional, o espelho de uma vida em perpétuo movimento e vibração.
Tudo em Inhabitants ou imitar o andar parece aludir para essa qualidade cinética – por vezes evanescente e transitória, mas capaz de afetar uma cadeia de acontecimentos – da vida. As obras e a construção do espaço exigem do leitor uma certa deambulação peripatética. Fazer da queda uma escada (2023), Pé esquerdo (2010-2023), 3 x 4 | Para ver (2023), Salpico (1, 2, 3, 4 e 5) (2023), Peças de sombra e outros brilhos 2 (2023), e a impressionante Em memória da luz extinta (2023) obrigam o corpo a mover-se, a perscrutar as peças de vários ângulos, sob diversos pontos de vista, à luz de um brilho e de uma sombra sempre diferentes.
De facto, luz e sombra – ou brilho, cor e sombra – marcam uma presença determinante nesta exposição. Confidenciava o artista a um grupo: “as obras carregam a própria sombra” – como se os objetos fossem uma cumulação de tempos e espaços; como se os objetos tivessem uma memória cromática e lumínica que gravasse neles a sua passagem pelo mundo; como se os objetos, enfim, compreendessem um entendimento surreal – sobrerreal, até mesmo surrealista – da vida, capaz de desconstruir lugares, perspetivas, entendimentos e convenções. As obras são um palimpsesto de tonalidades, temporalidades e toques: guardam em si, qual corpo feito de manchas, sinais e cicatrizes, os traumas e as mudanças dos tempos, e a afetação dos vários espaços em nós.
Por entre solas de sapatos, candeeiros suspensos do teto resgatados à SIMALA; por entre planos, sobreposições, intersecções e cruzamentos, damos igualmente conta que o percurso de Sousa Vieira tem sido o de desafiar as normas. Atentos ao chão da galeria, no meio da enchente que acorreu ao happening inaugural, depressa percebemos que as solas de borracha retiradas ao abandono da SIMALA são todas de um pé esquerdo. No texto-manifesto que assina por ocasião do lançamento do projeto editorial Esconso, Sousa Vieira sublinha essa necessidade que a arte tem de ser avessa a concordâncias, de ser uma pedra na engrenagem do mundo – uma lente oblíqua sobre uma ortogonalidade que deve ser quebrada para gerar novos espaços, para deste modo desafiar uma perspetiva central, um ponto de fuga único, que afunila e estreita em direção a um lugar. Como refere o artista, “Este desajuste entre um mundo destro e uma habilidade esquerda é, para mim, o equivalente ao desvio entre a visão comum, que produzimos no quotidiano, que busca o reconhecimento e a categorização normalizada, e a que resulta do olhar em arte, que procura a desnaturalização do que é observado, propondo essa experiência como um questionamento.” Debaixo das solas, fotografias do que forram lapsos de produção em cadeia, desvios e falhas que resultaram de máquinas e trabalhadores que erraram. E é nesse erro que jaz a beleza da diferença, do que sai de órbita, trespassa e fere um cânone, para o tornar ainda mais belo, ainda mais humano.
Não sendo uma exposição retrospetiva, porque tudo o que aí é exposto é recente, Inhabitants ou imitar o andar não deixa de ser um exercício que faz o balanço de 20 anos de atividade e passa em revista uma disciplina e um trabalho que se fizeram em estreito diálogo com um espaço agora expectante e definitivamente abandonado. Nas novas instalações em Leiria e em Lisboa, no Atelier do Rego, Nuno Sousa Vieira conserva em muitas das suas obras resquícios desse espaço, sob uma nova ordem, uma nova dialética, sempre transformadora e humanizada – um heraclitismo evidente dessa ideia de movimento, de mudança, que transparece por toda a exposição
Inhabitants ou imitar o andar está patente na Galeria 3 + 1 Arte Contemporânea até 9 de setembro.