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Deusas Solares Contemporâneas: Extrativismo em Torres Vedras, de Inês Ferreira-Norman

No dia 15 de junho, inaugurou na Casa Azul, da EMERGE, a exposição Deusas Solares Contemporâneas: Extrativismo em Torres Vedras de Inês Ferreira-Norman, com curadoria de Jorge Reis, composta por uma instalação em que, sobre o chão da galeria, é delimitada uma área dentro da qual as deusas esculpidas em cobre se erguem acima de pequenos montes de diferentes tipos de solos extraídos de diversos locais do concelho de Torres Vedras e nas paredes observam-se símbolos ficcionados integrando esta nova mitologia e os cultos às deusas solares. A completar este cenário e parte importante da mostra, há ainda o livro de artista onde, junto a fotografias das esculturas, são descritos os cultos às divindades, bem como as suas funções e nomes. Em jeito de culto primordial e inaugural, celebrado pelo canto e ambientado com incenso, a artista realizou nesse dia uma performance em que se sentia essa energia ritualística, o contacto com a natureza e especialmente a ligação entre terra e sol, também representado pelos girassóis colocados junto às peças de cobre como oferendas às deusas.

Constatando que atualmente existe na sociedade ocidental, no que concerne a religião e a espiritualidade, um sistema binário de crentes e não crentes assente numa hegemonia monoteísta que domina esta cultura, em que ou se acredita num só deus ou se é ateu (conceito associado ao individualismo e a uma «supremacia do humano sobre o planeta»), a eco-feminista Inês Ferreira-Norman preconiza uma espécie de revolução solar traduzida num dos principais pressupostos trabalhados na exposição: a «cicatrização dos valores culturais através de uma simbologia politeísta e matriarcal ao culto do Sol», como escreve na folha de sala. À semelhança do que Albert Camus afirmava na célebre frase «Eu não acredito em Deus e não sou um ateu», aqui se revela já a complexidade que a espiritualidade de cada individuo pode encerrar, em contraste com a simplista e dogmática instalada pelo status quo. Assim, no presente corpo de trabalho, a artista e criadora de mundos constrói e/ou reflete a sua própria cosmovisão e mitologia, povoada pelo cruzamento da ecologia e sustentabilidade com a espiritualidade, a energia, a ciência e a vida em sociedade.

Antes de nos debruçarmos sobre o nascimento e ramificações mais concretas da investigação e respetiva materialização que culminaram no que se pode contemplar na Casa Azul, em termos conceptuais e de formação e visão artísticas, um nome ressoa-nos na memória: William Blake, artista e gravador que viveu entre os séculos XVIII e XIX. Tanto Blake como Inês Ferreira-Norman especializaram-se na produção de livros de artista (ambos no Reino Unido) e na relação entre artes plásticas, ilustração, escrita e design editorial, cuja conceção assenta em significados profundos envolvendo arte, espiritualidade, História e ciência. Assim como em Blake, também no trabalho da «artivista» em análise se denota uma unidade artística e simbólica entre as diversas esferas referidas – no caso de Deusas Solares Contemporâneas, escultura, instalação que inclui recursos naturais, desenhos de símbolos/signos nas paredes, livro de artista (com fotografia e escrita sobre as deusas e respetivos cultos) e a própria performance efémera. Todos os elementos se complementam, têm o mesmo peso e contribuem para a materialização da sua cosmovisão, composta da sua visão interior sobre o mundo e sobre a religião, afastando-se de quaisquer convenções, e onde a imaginação, a ecologia e o feminismo ligados por conceitos de fertilidade e energia vital através da celebração do sol e da Mãe-natureza prevalecem sobre um capitalismo destrutivo, tornando assim ambos os artistas criadores de divindades. A potencialidade cosmogónica associada a esta sintonia de iconografias e significados que concorrem para que cada um dos artistas mostre a sua própria espiritualidade resulta na criação de mostruários de figuras mitológicas que aliam o carácter sincrético de uma cosmologia comum a diversas mitologias, culturas e línguas – no caso de Inês Ferreira-Norman, centrando-se nas europeias – a uma vertente local e individual ligada às origens e ao universo espacial, simbólico e cultural dos artistas.

Inês Ferreira-Norman e William Blake partilham não só vivências e interesses geográficos, artísticos e históricos intrinsecamente ligados à Europa, mas também a base ideológica de que a religião deve ser construída por e para a Humanidade, segundo a devoção pessoal e a visão interior de cada um, de acordo com a sua imaginação, mas em sintonia com o coletivo e com um equilíbrio entre o selvagem e a civilização, a natureza e a cultura. Tudo isto se traduz numa espécie de alfabeto ou sistema hieroglífico de comunicação e invenção de palavras e imagens, que partem em ambos os casos do mesmo material: o cobre – em Blake, usado na gravura, e, em Ferreira-Norman, manipulado para forjar o nascimento das formas das deusas contemporâneas. É também através deste material que, na obra da artista caldense, o local encontra o global. Para melhor se compreender esta afirmação e as duas bases fundadoras que convergem para a junção entre a inspiração numa mitologia solar e feminina mais global (europeia) e a vertente mais material e ecológica ligada ao contexto local do Oeste de Portugal, particularmente de Torres Vedras, torna-se interessante convocar um excerto da breve conversa que tivemos com a artista:

Sei que parte da tua investigação se centrou nos vestígios ritualísticos (do período Calcolítico) encontrados no Castro do Zambujal, mas gostaria de saber se as formas das tuas esculturas de cobre se inspiraram em alguns desses vestígios e se os nomes e simbologia das deusas foram totalmente inventados/ficcionados por ti ou existiram mesmo na mitologia desse período histórico. Peço também que me fales um pouco sobre o extrativismo em Torres Vedras.

IFN: As inspirações que eu tive relativamente ao Calcolítico e ao Castro do Zambujal foram simplesmente de fundação, ou seja, não obtive nem nomes nem formas absolutamente nenhumas referidas ao culto; aquilo que consegui saber foi que no Castro do Zambujal há indícios da produção de cobre e depois, a nível mais geral, a nível europeu, existe definitivamente um culto a uma entidade feminina, ao Sol (…), uma referência geral ao período Calcolítico na Europa. Portanto, a partir destas duas fundações, realmente ficcionei todas as deusas, todas as esculturas que estão em mostra.

As formas das esculturas vieram pelas suas funções, a inspiração divina pelas suas funções. Todo o meu trabalho converge um pouco as perspetivas espirituais com as científicas, e foi daí que elas nasceram – fui pesquisar várias funções do Sol e da luz solar e como é que a luz solar se comporta no planeta Terra, e foi a partir daí que as deusas surgiram. Portanto, comecei a isolar certas funções e a imaginar o que é que cada deusa poderia ser. A partir dessas funções, vieram depois os nomes.  Também procuro no meu trabalho fazer a aliança entre o local e o global – neste caso, entre a nossa região saloia, por assim dizer, e a Europa. Portanto, procurei usar prefixos de várias línguas com origem na Europa, no livro até menciono duas dessas deusas que não chegaram a ser expostas – por exemplo, havia o prefixo “zun”, mais da zona nórdica; o prefixo “zon” é alemão; o prefixo “hel” é grego; depois há o “sun”. Todos os prefixos foram tentando mapear também essa origem europeia e aliar esses aspetos. E depois, então, de elas terem um nome e uma função é que veio a forma, e a forma vem de inspiração completamente da minha cabeça e vem relacionada com a função e os nomes delas.

Relativamente ao extrativismo em Torres Vedras, baseei-me num documento que a Câmara Municipal tem disponível já desde 2019 (se não me engano), que contém uma análise a recursos hídricos, recursos de terras agrícolas, recursos geológicos; é um relatório bastante extenso e existem vários mapas, um deles é um mapa de onde existem operações de extração mineira, quer sejam no passado, no presente ou até em prospeção (…). Foi através desse mapa que me guiei para ir buscar os solos nos diferentes sítios. Em Torres Vedras, neste momento, faz-se ativamente extração de barro, calcário, que depois é transformado em brita, e faz-se também extração de areia. (…) E depois, como é evidente também na exposição e isso foi uma das coisas que me tocou bastante em relação ao aspeto local da exposição, é que dá para ver bem a diversidade de solos que há em Torres e (…) no Casal de Vale de Canas, por exemplo, existe outro tipo de exploração, que é a exploração de eucaliptos. Em vez de ser exploração mineira, é exploração florestal. Outra coisa que entretanto descobri: (…) hoje em dia, mesmo as empresas que ainda se mantêm ativas a fazer comércio de carvão, não fazem produção aqui em Torres, mas importam-no de Cuba; é processado aqui em Torres, realmente, porque ainda há essa tradição, mas a tradição tornou-se numa operação de comercialização. Portanto, o extrativismo está a evoluir de outras formas e realmente com ramificações globais neste caso.

Esta exposição-homenagem à Mãe-natureza está patente até 5 de agosto.

Inês Joaquim (Torres Vedras, 1990) vive na sua cidade-natal e tem transitado entre esta e Lisboa. Após uma breve incursão pelo design na FBAUL, licenciou-se em História da Arte (FCSH - UNL), seguindo-se o mestrado em Gestão e Estudos da Cultura (ISCTE-IUL) com a dissertação “Organizações «inter-artes»: inovação ou reinvenção? O caso da Cooperativa de Comunicação e Cultura”. Foi nesta associação cultural torreense que iniciou o seu percurso profissional, que inclui posteriores passagens por organizações de diversas áreas artísticas, desde as artes visuais (na CCC) ao cinema (na Leopardo Filmes), passando por artes performativas como a música, o cinema de animação e o teatro (na sala de espetáculos Bang Venue e na In Impetus - Escola de Atores). Nestes espaços culturais, atuou em várias áreas, destacando-se o apoio à curadoria, a produção e gestão cultural, o apoio à comunicação e a gestão de candidaturas de projetos culturais a apoios financeiros.

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