Disturbance in The Nile na Brotéria
A República do Sudão, antes de 2011, era o maior país do continente africano. Nas suas imediações, avistava-se, circundado por uma profusão de países. Engastado entre a Líbia, o Chade, a Etiópia, a República do Congo, a República Centro Africana, o Uganda, o Quénia, partilhava ainda, em conjunto com a vizinha Eritreia e o Egipto, a saída para o Mar Vermelho, onde, do outro lado do mar, sopravam ventos provenientes de Meca, e brisas oriundas do Iémen.
Hoje é um estado que viu reduzirem as suas dimensões, tendo-se repartido em duas partes, mais a norte, com a República do Sudão, e mais a sul, com a recente constituição, até ao momento, do mais jovem país do mundo, o atual Sudão do Sul.
Perpassada por persistentes peleias e conflitos internos, a República do Sudão tem assistido, por isso, a uma criação artística votada a muitas interrupções, e a um verdadeiro esforço de resiliência, por parte dos artistas, para manter viva a identidade de uma arte sudanesa. Constituída ela por um certo hibridismo africano-árabe.
A exposição Disturbance in the Nile – Arte Moderna e Contemporânea do Sudão, patente na Brotéria (e comissariada por António Pinto Ribeiro e Rahiem Shadad), pretende apresentar-nos, não somente, um retrato de uma “realidade social, política, económica ou religiosa” de um país[1], como louvar a obra dos seus artistas, revelando a importância que a arte[2]tem no quotidiano sudanês, assim como, segundo refere o crítico de arte Mohammed Abdelrahman[3], mostrar a sua “diversidade e multiplicidade”[4].
Na exposição brotam, por isso, exemplos da arte mais recente, fruto dos últimos acontecimentos e mudanças no país.
Encontram-se assim, presentes na exposição, obras de nove artistas sudaneses que foram criadas durante o exacto período de revolução de 18 de Setembro de 2018[5].
O primeiro contacto com o espaço da galeria faz-se por meio das pinturas de Waleed Mohammed.
Waleed, um artista francamente jovem, com apenas 23 anos de idade, revela-nos retratos a óleo e acrílico sobre tela, de surpreendente mestria. Duas obras Something Special, de 2022, e Black people are dope, do mesmo ano, demonstram, não só características realistas das pinturas de Waleed, como também o modo como o próprio título da obra de um artista pode ser relevante para a valorização de uma obra. O forte magnetismo da personagem feminina sentada, abeirando um grande ramo de flores, pousado sobre uma pequena mesa redonda, surge reforçado pelo mistério despertado pelas palavras que acompanham a obra, no título Someting Special. Não revelando o que é especial na figura, o título torna a obra justamente enigmática. Ao lado de Something Special, encontra-se Black People are Dope, As Pessoas Negras são Fixes. Mais uma vez o título reforça a mensagem da obra. Dois homens retratados de forma realista, surgem representados sobre um fundo de um azul límpido e inequívoco.
Mohamed A. Otaybi, pintor e ilustrador nascido em 1948, apresenta as suas obras pictóricas em acrílico sobre tela, realizadas entre 2021 e 2022. Evidencia cores vibrantes, e uma figuração que nos remete para uma ideia de narrativa pejada de histórias populares, ou de quotidianos vários. São obras que atestam a um profundo conhecimento técnico do volume e da luz, tão abundante no imaginário modernista do século XX, e que agora, progressivamente, vai emergindo no processo criativo contemporâneo das gerações mais novas.
Reem Al Jeally, artista formada em arquitectura, desperta-nos, na exposição, para uma obra de índole mais social. Com as suas pinturas acrílicas de cores intensas, vai apresentando “mulheres e espaços”.[6] A atividade de Jeally também se alonga a trabalhos de curadoria e a promover, na capital sudanesa, Cartum, a carreira de mulheres artistas[7].
Bakri Moaz revela-nos um corpo de obras realizado a acrílico sobre tela. A sua proficiência conduziu-o, nos últimos anos, a exposições internacionais como Kassel, na Alemanha, ou Art4you, no Dubai. Com atelier em Cartum, desenvolve um trabalho que aborda temas relacionados com a espiritualidade, “o divino”, e a “busca pela verdade”[8]. As figuras humanas, tratadas com cores índigo em contraste com tons avermelhados ou alaranjados, parecem, estáticas e firmes, olhar para um infinito, em pleno estado meditativo. Imortalizadas pela essencialidade do ser, num lugar onde o tempo parece ser um privilégio de todos, e onde é possível realizar um trabalho de autoconhecimento, ou lidar com situações de vida.
Pode ver-se ainda, na exposição, as obras de Rashid Diab, artista e teórico árabe-africano. A sua obra reveste-se de grande importância nos temas abordados sobre a “tradição africana e a influência ocidental”[9]. Estudioso em arte desenvolveu uma investigação em Espanha. As suas pinturas revelam a influência que este país ibérico exerceu na sua obra.
Miska Mohmmed, habitante de Nairobi, revela-nos obras das séries Cidades Perdidas e Savannah. Os trabalhos que desenvolve entre 2021 e 2022 são sobretudo paisagens urbanas noturnas, como a obra Abandoned, presente na exposição, ou ainda paisagens campestres, como a obra Harvest Season, revelando um interesse pela observação da natureza e do meio ambiente. Mohmmed participou, este ano, na segunda edição do African Abstraction Show, na Montague Contemporary, em Nova Iorque.
Eltayeb Dawelbait, residente também em Nairobi, revela-nos um trabalho inventivo, desenvolvido com base em materiais reciclados, que habitualmente recolhe pela cidade.
A sua preocupação ambiental estende-se também pelas tintas que utiliza. Dawelbait cria os seus próprios pigmentos de origem natural. As tábuas de madeira que usa, cobertas por outras tábuas mais pequenas, são pintadas de cores vivas e ostentam raspadelas sobre a superfície que aludem ao desenho, por meio da abundante profusão de linhas vibrantes que ajudam a formar os rostos.
Tariq Nasre, oriundo de Dongola, formou-se em pintura na escola de Belas Artes e Artes aplicadas do Cartum, mas trabalha também como designer, ilustrador e caricaturista em revistas e jornais. Baseou-se na arte tradicional sudanesa para encontrar o seu estilo texturado e peculiar.
Yasmeen Abdullah, é uma artista plástica sudanesa, que se baseou na obra poética de Mahmoud para representar a mulher de forma “bonita e poderosa”[10].
Os cabelos compridos ostentados em Sê um herói neutro para sobreviver, 2021, revelam o poder da feminilidade. E as obras Não nos separámos, mas nunca nos encontraremos, 2022, ou ainda Ele está calmo e eu também, 2022, acusam episódios de encontros e reencontros, e relações mais ou menos conturbadas entre homem e mulher.
Disturbance in The Nile está patente na Brotéria até 28 de julho.
[1] Texto de introdução “Expandir a Imaginação”, da autoria do Diretor-Geral da Brotéria, Pe. Francisco Mota SJ, presente no catálogo da exposição “Disturbance in the Nile, Arte Moderna e contemporânea do sudão”, pág. 05, editora Brotéria, Junho de 2023.
[2] Ibidem
[3] Dr. Mohammed Abdelrahman, professor na Faculdade de Artes da Universidade de Al-Neelain, Sudão.
[4] “Arte, Caos e Memória”, é um texto de Dr. Mohammed Abdelrahman, professor na Faculdade de Artes da Universidade de Al-Neelain, no Sudão, presente no catálogo da exposição patente, neste momento, na sala de exposições da Brotéria. Pág. 09.
[5] Ibidem
[6] Biografia de Reem Al Jeally, no Catálogo da Exposição Disturbance in the Nile, edição Brotéria.
[7] Ibidem
[8] Ibidem
[9] Ibidem
[10] Ibidem