Hello! Are you There? Luisa Cunha no maat
Ocupando a totalidade do primeiro piso do edifício da antiga central termoelétrica, prolongando-se ao exterior, Hello! Are you there? é a mais ampla exposição retrospetiva de Luisa Cunha (1949, Lisboa), que surge após a atribuição do Grande Prémio EDP Arte 2021 à artista. Com curadoria de Isabel Carlos, a mostra compreende um conjunto de 54 obras, realizadas entre 1994 e 2023, abrangendo múltiplos suportes, desde a pintura à escultura, do desenho à fotografia, passando pela instalação e o vídeo, todos eles permeados pelo som, a voz, e, entre eles, a palavra.
As obras de Luisa Cunha ganham aqui outra vida, informada pelas relações que estabelecem entre si e com a arquitetura particular do lugar onde estão instaladas. No seu conjunto, por entre sons que se vão esculpindo e modelando, ganhando ritmos, cores e corpo, por entre loops que estabelecem cadências e intervalos de antecipação, revelam a forma subtil e acutilante como a artista, tão centrada e próxima da experiência quotidiana de todos os dias, encara a realidade e as circunstâncias políticas, sociais e comunicacionais que condicionam o modo de nos relacionarmos com o outro.
Por entre os jardins do maat, chegando à praça do carvão, ouvimos um estranho grito que nos vai permeando a pele. Uma voz sem corpo presente, espectral, que se vai tornando cada vez mais perturbadora e aflitiva, na sua repetição ininterrupta e visceral apelo. Do crivo, onde em tempos se triturava o carvão necessário à produção de energia, ouve-se gritar algo que se assemelha à palavra inglesa para liberdade, Frydm!(2011). A artista concebeu esta obra em reação à leitura de uma reportagem online sobre os prisioneiros políticos que, na Líbia, durante a Primavera Árabe, estavam encarcerados em fossos feitos na terra, tapados por uma laje que tinha apenas uma frincha, através da qual respiravam. Quando sentiam a presença da imprensa internacional começavam a gritar, num inglês mal pronunciado, a palavra “freedom”. O horror da guerra está presente em vários momentos da exposição, e talvez seja aí que a tão subtil reflexão da artista sobre a realidade social e política se torna mais evidente. Uns debaixo dos outros (2017), instalação composta por um aglomerado de tijolos queimados, resgatados de uma carvoeira pela artista, alude precisamente à ideia da guerra e destruição, ainda que os possamos encarar, simultaneamente, como a derrocada e o derrubar de fronteiras.
Na entrada para a primeira sala, uma enorme parede cor-de-rosa, preenchida por pequenas fotografias, notas e intervalos, recortes de cartas e realidades observadas. Spots (2009), pequenos pedaços de vida. Um mapa onde se tecem indícios de histórias que pela imaginação nos transportam para outros tempos e lugares. Num pequeno pedaço de papel pode-se ler “Wish you were here”, “Ojala estuvieras aqui”, “Ich wünschte du wärst hier”. Mais à frente “até breve, um abraço amigo”. Parece assentar aqui alguma essência de várias das obras presentes na exposição, que aludem recorrentemente para a ausência, para o desejo do (re)encontro e a procura que lhe é inerente. A amizade, o amor, a vulnerabilidade intrínseca às relações que estabelecemos com os outros e com o mundo que nos rodeia e tão profundamente impacta. Essa vulnerabilidade torna-se ainda mais presente quando reparamos, entre os milhares de fragmentos, e contrastando com as situações de lazer e demonstrações de candura, canhões e caça-aviões que remetem, mais uma vez, para o contexto da guerra, sublinhado pelos disparos que espaçada e repetidamente se ouvem: Sweet bloody life (2009).
Por entre o percurso expositivo vamos encontrando obras que sublinham a relação com a arquitetura, a apropriação do mundo pela sua medição, pelo cálculo e aferição, em Obra com nível (2011) ou Até aqui (2018), obras que comentam o próprio espaço museológico e os seus modos de funcionamento, em BC (1998), obras que assumem um cariz autobiográfico, onde o presente se enleia ao passado pela memória individual e familiar, em Mulher de 58 anos aos 2 anos (2008) ou R/C (2016), obras que sublinham o estatuto do observador, que pode ser também ele observado ou guiado na sua observação, em Ali vai o João (1996) ou Inner View (2010) e obras que nos falam do processo criativo de Luisa Cunha, do seu modo particular de se relacionar com o que a rodeia, em forma de zoom in/out, em Gone with the sea (2019) ou Objecto #2 (2005). Na sua maioria vão sublinhando a ideia do encontro, do desencontro e da procura. Em N ou M? (2015), numa sequência de 10 fotografias, um homem, primeiro sentado à beira mar, levanta-se respondendo ao aproximar de um outro que, vindo de longe, dele se vai abeirando. Entre os dois, a energia vital do desejo, do encontro que se antecipa. No entanto, mantém-se entre eles um espaço de separação remanescente. A experiência desta obra é marcada pela voz que emana de quatro pontos de som distribuídos pelo mezanino, dizendo-nos, em loop, “You are so beautiful”. Turn around (2010). Viramo-nos e lemos It’s all in your head (2007), série onde a artista registou fotograficamente o chapéu do avô, trabalhando-o com vários cromatismos. A ambiguidade das palavras. Talvez a relação que acabámos de estabelecer entre os dois homens esteja toda na nossa cabeça. Talvez a ideia que temos do outro, a forma como o vemos, ouvimos e pensamos, esteja toda na nossa cabeça, e daí resulte o espaço entre nós.
A procura mantém-se na sala das caldeiras, onde, por entre a antiga maquinaria, se pode ouvir, em loop, uma voz que chama por Luisa, A artista à procura de si própria (2015). Neste texto sonoro, tal como em Hello! ou Drop the Bomb (1994), The Hat, Field of view (2010) ou Words for gardens(2004), nas várias vozes de Luisa Cunha, somos levados a atentar na própria voz enquanto matéria, com substância, cores e dinâmicas próprias, através da qual o carácter físico, rítmico, e individual da comunicação falada é percetível. O que nos leva às obras em que a artista opta por não usar a sua própria voz, substituindo-a pela voz – poderemos chamar-lhe assim? – mecanizada de um computador. Frases metálicas, num tom grave e masculino, que nos mandam fazer o que temos de fazer, em Do what you have to do (1994), ou que, num tom feminino e de modo voyeurístico, descrevem a ação multidirecional de um corpo pelo espaço, a partir da posição de quem o observa, em Dirty Mind (1995). Um corpo – talvez o nosso – observado por entre o ligeiro entreabrir das venezianas vermelhas fechadas. Um corpo que entra, desce, desaparece, se aproxima, sai, e volta e torna a fazê-lo. Uma persiana que nos impele a espreitar pelo ligeiro entreabrir, mas que rapidamente frustra as nossas intenções: para lá apenas uma parede branca.
Sejam ditos pela própria ou por vozes geradas por computador, os textos sonoros de Luisa Cunha demonstram-nos como o que há de mais pessoal e individual na voz de cada um dificilmente poderá ser completamente separado da dimensão da partilha. De facto, a partir do momento em que um som é reconhecido como voz, apela e faz surgir um recetor, alguém que a escuta e procura entender. É esse o modo como respondemos a estas obras, que nos interpelam e invocam, apelando sempre a uma interação, a uma resposta fundada no encontro, criando a possibilidade da partilha e de uma dimensão coletiva.
No seu conjunto, em Hello! Are you there? encontramos obras muito simples, diretas e exatas. É dito o que se quer dizer. É mostrado o que se quer mostrar. Mas, na sua exatidão, operam disrupções de sentido que nos levam a refletir sobre a importância do deslocamento para a reconfiguração do modo como encaramos e concebemos a realidade. Reconhecer o ambíguo, do som, da imagem, da linguagem e da comunicação, não para sucumbir ao relativismo, mas porque assim se torna possível desafiar a sua instrumentalização por discursos absolutistas e totalizantes. Esta experiência da voz, da palavra, e das imagens, no limiar do sentido, mediante a criação do inesperado, gera fendas abertas à possibilidade, que nos permitem entender estas obras como lugares de imaginação, mas também enquanto lugares de resistência, de desconstrução de narrativas lineares e unes, de sistemas comunicacionais, sociais e políticos instituídos, de conceções normalizadas do real e da identidade individual e coletiva.
Talvez seja precisamente devido à disrupção e à ambiguidade que na obra de Luisa Cunha, reveladora de um humor desarmante e fina inteligência, pareça haver sempre algo que nos escapa, que nos desarranja e brinca connosco, que é fugidio e não se deixa agarrar. São obras que se estabelecem nesta tensão entre o encontro e o desencontro, entre a comunicação e a incomunicabilidade, pugnando sempre pela procura.
Hello! Are you there?, exposição de Luisa Cunha com curadoria de Isabel Carlos, está patente no maat até 28 de agosto.