A poesia que nunca escapa a Ilda David’
Está patente na Sociedade Nacional de Belas Artes uma nova exposição de Ilda David’, intitulada metamorfoses: Os rios transbordam e desabam…, com a curadoria de Nuno Faria e aberta ao público até 22 de julho.
A descrição no site desta mostra parece, à partida, vaga. Metamorfoses, cosmologias, poesias, múltiplos materiais, hibridismo, inúmeros conceitos que parecem prometer demasiado para uma única sala de exposição. Querer abarcar quase todos os temas da arte em 36 obras parece premissa impossível de cumprir.
E, no entanto, à medida que se percorre a exposição é mesmo isso que ela revela: de forma sólida e coesa, explora os temas originais de tudo o que de humano se encontra na natureza. Recheado de referências poéticas e figuras gregas, consegue, de facto, abarcar o mundo. Centrado em verdes e azuis de tinta (Águas Estreitas 32), que nos inundam em frescura e profundidade, com notas como se fora a giz branco (Metamorfoses Egéria, por exemplo), traços curtos que evocam raízes de árvores sobrepostas a formas aguadas.
Esta exposição, constituída quase só por obras novas, consegue deixar correr gotas de tinta, mas também encontrar nichos de gelo (Metamorfoses – Ariadne) e fogo de cavernas (Metamorfoses – Vulcano), nunca deixando de lado figuras humanas, sombras fantasmagóricas pouco definidas (Sem título), em liberdade, mas sem grande contentamento. Havendo apenas uma referência explícita à morte (Sem título), ela paira sobre alguns quadros, mas a mostra parece ser, sobretudo, uma ode à vida.
O espaço não está cheio. Antes as peças retangulares têm lugar para respirar na sala oval. Sendo apenas uma divisão, a obra é una.
O percurso da artista incluíra já figuras que vagueiam no indefinido, quer em jogos a preto e branco (Ilda David’, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986), quer em cores recheadas de significado (Ilda David’, 1991, Galeria 111). Estas ondulações humanas conjugaram-se depois com uma viragem para contornos de formas feitos de fendas (Ilda David’, Galeria Fernando Santos, 1999). A exposição Incubus (Parque Expo98, 2000), a propósito da ilustração de uma edição de Fausto de Goethe, torna-se essencial para um enlaçar dos dois momentos artísticos, entre as figuras de um submundo de Hades/Plutão com o explorar do mundo dos elementos naturais, entre ventos, fumos e desertos. Só depois veio a água.
Como se não bastasse a sobreposição desses elementos à literatura que os inspirou, há um segundo tema presente na exposição. Ronrona de fundo, não é imediato. Ocupa espaço nos mapas de linho suspensos (Por Alguns Dias 1, Por Alguns Dias 2 e Por Alguns Dias 3), onde se traçam cartografias ao sabor da imaginação, sem o rigor da realidade do terreno. Sabemos, através da citação sobre o papel da tecelagem na Grécia Antiga, constante da folha de sala, sobre a morosidade na confeção. Esta escolha não é inocente na forma. Vincando isso mesmo, lado a lado com as peças de linho, encontramos na pintura figuras femininas no amarelo do deserto (Incubus XVI), traçadas em terra rasgada pela seca – sedenta da água que povoa outros quadros. O que se revela, não destoa do tema original, completa-o. Vem o feminino a propósito ainda de íncubos, figuras demoníacas masculinas, da Idade Média que procuravam mulheres adormecidas para delas se apossarem. É o espaço pagão do submundo que se dispõe em proximidade com o temor cristão.
Por fim, a primeira peça (Lineamenta 3), um degrau acima do chão, à volta da qual se constrói a exposição, assume uma composição diferente, não apenas nos materiais. Feita de diversos tipos de mosaico, constrói um labirinto de azul e preto, ponteado de branco e vermelho. O material que a constitui é parte integrante da natureza, mas a composição também se atreve a reconstruir outras topografias mais urbanas, lembrando vestígios arqueológicos. Um “toca e foge” do inevitável na paisagem, pois aqui é sempre de mutações que falamos.
Ilda David’ já explorara os amarelos gretados (Incubus, 2000, Parque Expo98), os brancos orientais (Camarupa, Galeria Fernando Santos, 2003), os vermelhos e castanhos bíblicos (Pentateuco, Assírio & Alvim, 2007), as sombras com todos os materiais (Do negro a luz, Fundação Carmona e Costa, 2016), numa experiência cromática que agora se completa. Os azuis da pintura, maioritários na exposição, recriam o mundo das náiades, ninfas de água doce, e relembram que até aqui tudo foi feito de versos. A artista tornou o seu amor à poesia claro quando deu rosto a capas de tantos volumes de poesia portuguesa. Sabemos que ela é uma constante no seu percurso. A autora não escolhe entre pintura e poesia porque na sua obra elas estão em completa simbiose. Confirma-se na representação da água e da terra, fica mesmo desenhado na pedra, o que é estrutural e parte de uma assinatura própria. Ou não tivera a exposição o mesmo nome da obra-mestra de Ovídio.
Nas palavras de José Tolentino Mendonça, que de tão perto tem acompanhado o seu percurso: “E, depois, é como se a terra (e essa terra que é a pintura) cedesse ao peso do sublime. E o estremecimento que produz a instabilidade do mundo, indicasse também a deflagração de uma presença rara, absoluta. Às vezes penso que a pintura de Ilda David’ tem a beleza dos aluimentos que as grandes chuvadas provocam nos campos, vizinhos de novo ao seu início.” (Mendonça, José Tolentino, “Ilda David’: A Percepção Sublime” in Ilda David’, Porto, Galeria Fernando Santos, p. 7).